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3 OBÁS DE XANGÔ (2024) Dir. Sergio Machado


Texto por Marco Fialho

 3 Obás de Xangô aborda por um viés interessante a persistência e a resistência da religiosidade de origem africana na Bahia. Obá dentre outros significados se refere a um título nobiliárquico entre os iorubás, uma representação que aqui no Brasil caiu como uma luva para 3 artistas que serviram de mediadores e divulgadores da cultura iorubá em um momento de muitas agressões vindas da sociedade. 

Assim, Carybé (o desenhista, pintor, músico e capoeirista), Dorival Caymmi (compositor e cantor) e Jorge Amado (escritor) se uniram para propagar a cultura afro-baiana. O documentário, dirigido por Sergio Machado (Cidade Baixa) resgata gravações inéditas realizadas pelo cineasta João Moreira Salles nas últimas décadas do século XX para discutir a força das artes para uma ressignificação dessa cultura afro-baiana com a sociedade. Essa é a força desse doc, a de frisar o quanto esses três personagens foram cruciais para a sobrevivência de uma cultura antes muito estigmatizada, de como serviram de ponte entre os terreiros de candomblé e a sociedade, na luta contra os preconceitos advindos do escravismo brasileiro. 

Esses Obás, e porque não dizer embaixadores da cultura baiana, sedimentaram essa potência local em termos artísticos. Basta ler um livro de Jorge Amado para se entender isso, ou ouvir uma canção de Dorival ou ver um quadro de Carybé. O filme é muito competente para mostrar isso de uma maneira muito direta, com os 3 personagens interagindo com a cultura popular baiana. Jorge Amado demonstra uma desenvoltura extraordinária ao caminhar entre o povo baiano, com o seu evidente carisma de quem já foi político também. 

O filme mostra como a linhagem de Xangô está estritamente ligada a essa liderança espiritual, por essa entidade representar os trovões, a luz e o fogo na Terra, por simbolizar a possibilidade da comunicação. Várias imagens deles nos terreiros são mostradas e traduzem a força e a beleza dos rituais do candomblé, o quanto a visualidade do colorido e a força do batuques e cânticos o tornam são atrativo e envolvente a sua prática religiosa. 

Há um esforço da direção em exibir o quanto os três Obás artistas retiram a força de seus trabalhos das ruas, na interação com os agentes populares que saltam da realidade para serem imortalizados numa música, como um personagem literário ou pictórico. Personagens que muito dizem sobre o lugar de onde vieram, que interagem com as ondas do mar, com a pesca, o luar e as estrelas do céu. O documentário também salienta a importância do romance de Jorge Amado de lembrar e humanizar a vida das prostitutas e vagabundos que faziam da noite o seu momento de sobrevivência, de lançar holofotes aos marginalizados pela sociedade. Jorge Amado comenta, numa das melhores passagens do filme, que muitos comentavam esses aspectos como negativos e que ele respondia que antes de encarar esses supostos desmerecimentos como tal, os via como elogioso, pois eram intencionais.

Vale ressaltar como Sergio Machado se utiliza de várias obras cinematográficas para costurar as ideias de sua obra. Os belos filmes Nelson Pereira dos Santos, um dos nossos ícones cinemanovistas, surge com suas imagens de rituais do candomblé e da cultura popular como um todo, em especial os que se basearam nas obras de Jorge Amado, como Jubiabá (1986) e Tenda dos Milagres (1977). Mas chama a atenção ainda Jorjeamado no Cinema (1979), a obra magnética de Glauber Rocha. 

3 Obás de Xangô resgata a força do feminino tanto nos terreiros de candomblé em si quanto nas obras de Caymmi e Jorge Amado. Nas duas, nota-se o quanto é relevante o protagonismo da mulher. Se Amado salienta e naturaliza em Dona Flor e Seus Dois Maridos, o ato de uma mulher ter dois homens, Caymmi canta Janaína (Iemanjá) incansavelmente em suas canções. E o documentário traz o escritor Itamar Vieira Júnior (autor do aclamado romance Torto Arado) para sublinhar esse aspecto do feminino nessas obras. 

Mas 3 Obás de Xangô chega até nós como um registro singelo, em uma simplicidade que emana cheiros vindos das ruas, terreiros e praias, além de resguardar a necessidade da tolerância religiosa no país. Há sim algo de misterioso se pensarmos que esse material foi filmado há algumas décadas atrás por João Moreira Salles (uma pena que o filme não revele ou desdobre qual seria a finalidade dessas filmagens), como conversas e interações com os próprios artistas normalmente nas ruas, com exceção de Caymmi com sua preguiça sempre inspiradora de curtir a rede de sua casa. Esses depoimentos e flagrantes dão um frescor indubitável, um quê de vitalidade ao material exibido, uma delícia para quem ama a nossa cultura popular e nossos artistas espetaculares.           


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