Texto por Marco Fialho
O diretor Gabriel Mascaro trabalha em dois flancos em O Último Azul. Em um deles, temos um Estado autoritário impondo aos idosos a partir dos 75 anos a viverem numa colônia. Em outro, temos Tereza, uma mulher prestes a ter que entrar na tal colônia, mas cujo sonho é voar de avião e não aceita o futuro que lhe é dado. Assim, distopia do poder e a utopia individual convivem lado a lado nessa obra premiada com o Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim.
A grande protagonista de O Último Azul é Tereza, em uma interpretação magnética da atriz Denise Weinberg. O filme rapidamente se transforma em um enviesado road movie, realizado entre barcos, canoas e outros veículos que levam a personagem para um voo indeterminado e sem destino pré-fixado. O Estado surge em forma policialesca enquanto vemos pichações em protesto contra o autoritarismo de forçar idosos a viver reclusos do resto da sociedade. O Último Azul não deixa de ser uma ode contra a opressão social etarista que vivemos, que desvaloriza o conhecimento e a vivência dos idosos. A resistência de Tereza em relação às medidas arbitrárias é o que mais valoriza a obra de Mascaro.
Se em Divino Amor tudo soa por demais esquemático, sobretudo por revelar os rituais no interior dos cultos da igreja, em O Último Azul, Gabriel Mascaro se liberta da obrigação de mostrar a colônia de idosos, centrando sua narrativa em torno da resistência pragmática de Tereza. E o maior acerto de Mascaro é colocar o filme nas costas da exuberante Denise Weinberg, de colocá-la de corpo presente em todas as sequências.
O Último Azul investe também em um lado lúdico, com um fictício caracol que tem uma baba azul que pingado no olho produz um efeito lisérgico. Esse elemento espiritual sugere mais um ponto de um universo utópico que Tereza cria para si, em contraponto à distopia da colônia de idosos implantada por um governo ufanista. O encontro de Tereza com Roberta (Miriam Socarras), uma barqueira cujo barco sugestivamente se chama Caridad e vende um tipo de bíblia digital engabelando os ribeirinhos e ribeirinhas rio afora, se revela transformador para ambas ao permitir uma leitura sexual subliminar entre elas, algo incomum na filmografia de Mascaro, normalmente mais explícita quanto à manifestação sexual de seus personagens.
O corpo de Tereza é como uma nau à deriva em uma Amazônia de rios caudalosos, uma mulher em busca de viver uma liberdade que o Estado lhe quer subtrair. O Último Azul é sobre esse corpo de mulher, que trabalhou numa fábrica, mas que logo é dado como improdutivo pelo governo e descartado à sua revelia. O filme é sobre a resistência dele, mas mais ainda, sobre a sua autodescoberta, reinvenção e capacidade de sonhar, de querer voar depois de mais de 75 anos vividos na Terra e de se ter autonomia depois dessa idade. E Denise Weinberg encarna isso com uma vivacidade extraordinária. O Último Azul trata de forma expositiva sobre como é ser um corpo feminino em processo de libertação, sedento por viver e apto para esse exercício vital. Tereza não chega a voar e assim precisa ressignificar seus sonhos. Mas ela mostra que existem muitas formas de se voar sem sair do chão. Viver pelos sentimentos é igualmente transgredir o que se espera de cada um de nós e Tereza aprende isso indo à luta e aceitando o ilimitado.
Mascaro não faz parte de um grupo de cineastas afeito ao uso abusivo de close-ups em sua mise-en-scène. Ele gosta mais de trabalhar com os planos mais abertos, dos médios e gerais. Por isso, cada close deve ser analisado com carinho, é o caso de um plano lá no final do filme em que ele filma portentosa Tereza e o seu cabelo branco fulgurante. Ali é inevitável a valoração daquele branco esvoaçante como se o vento o afirmasse ainda mais. E o que dizer de tudo isso acompanhado da voz de Maria Bethânia cantando Rosa dos Ventos, a belíssima e imponente canção de Chico Buarque, na qual ele numa parte da música faz uma homenagem rasgada à potência das águas amazônicas.
Mas se analisarmos retrospectivamente, o cinema de Gabriel Mascaro sempre foi afeito à sensibilidades inesperadas, como a que ocorre em Boi Neon (2015), em que um vaqueiro de rodeio é chegado ao mundo da costura (personagem de Juliano Cazarré) e sonhava em ser estilista de moda, e nas horas vagas fazia o figurino para exóticas performances noturnas nada convencionais, temperadas com máscaras de boi e música eletrônica. Ou ainda em Ventos de Agosto (2014), quando uma jovem urbana, roqueira e adepta de tatuagem retorna a uma pequena cidade litorânea para trabalhar numa plantação de cocos enquanto cuida de sua idosa avó, e de quebra se relaciona com um jovem mergulhador local. São estados de libertação vividos, transgressores pela simples maneira de se viver e sem um discurso definido, mas com ações que falam por si e carregam um sentido transformador. Sinto falta dessa narrativa mais fluida que caracterizava essas obras.
Em O Último Azul, Mascaro usa o personagem Cadu (Rodrigo Santoro) como um oráculo para Tereza, como alguém capaz de mostrar uma vivência mais abrangente e fazê-la sentir que a vida é ilimitada. É ele que a apresenta o poder da substância azul do caracol, a que possibilita a expansão da percepção e que nada tem a ver com a idade que temos. Ele também a ensina a pilotar um barco e nesse ato existe um quê de simbólico, dela retomar a vida para si, deixa subtendido a capacidade de autogerir a sua vida. Mas vale assinalar que Cadu representa um tipo de poder da ancestralidade que povoa nossas matas e rios, um conhecimento de gerações que transitam pelos mesmos espaços há séculos em suas embarcações rudimentares e terras úmidas.
Outro ensinamento, e talvez o mais útil, ela recebe de Ludemir (Adanilo), um mechanico malandro que lhe dá a dica de aprender a olhar no olho dos animais e deixar que eles escolham você, cena fundamental para uma outra, a da bela e enigmática briga dos peixes (os nomes dos peixes são um show à parte) que reafirma todos esses aprendizados. Mascaro desmistifica a ideia de que os idosos ensinam e os mais jovens aprendem. Todos nós estamos sujeitos a aprender e ensinar.
O final em aberto de O Último Azul pode ser lido de muitas formas, embora antes de tudo deixe evidente que essa mulher ainda aspira viver, que o seu fim não cabe em um filme. Se ela vai ser capturada pelo governo ou vai seguir sua jornada de libertação e autonomia não se sabe, mas há ali uma vitória individual poderosa. O corpo de Tereza parece estar ali nos lembrando um dizer que curiosamente vem de uma flâmula de avião (exatamente o veículo que representava o maior sonho dela): "O FUTURO É PARA TODOS". Essa imagem contraditoriamente vem de uma propaganda oficial do governo que prende os idosos e os amontoa em uma estranha e opressora ideia de colônia. Em O Último Azul, Mascaro não deixa muitos discursos pela metade, a transparência do que é dito e mostrado é tão evidente quanto o azul da baba do caracol.
Talvez o cinema de Mascaro já tenha sido mais intuitivo e indeterminado há 10 anos atrás com Ventos de Agosto e Boi Neon, menos preso a mensagens tão diretas como foi em Divino Amor e agora em O Último Azul. Talvez essa inserção da distopia nesses dois últimos trabalhos possam ter engessado mais a sua proposta cênica e endurecido os diálogos que agora precisam se referenciar numa luta contra os processos repressivos de instituições instauradoras de um Estado autoritário, mas ainda assim, Mascaro concentra e guarda uma força irrefreável a seus personagens libertadores. Isso é um mérito de resistência do seu cinema, que dá sempre claros sinais de que pode chegar em lugares mais distantes do que já chegou até aqui.
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