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ENSAIOS DE CINEMA (2025) Dir. Cavi Borges e Patrícia Niedermeier



Texto por Marco Fialho

Queridos Cavi e Pati, 

Deliberadamente inspirado nos Ensaios de Cinema, venho lhes escrever este texto em forma de missiva. Ando distante, eu sei, os motivos são de força maior, como vocês sabem, mas as cartas têm o dom de aproximar corpos distantes ou que se encontram desgarrados pelo tempo. A esperança nossa é que um vento ou uma nuvem furtiva (pode ser digital, inclusive) faça chegar essa mensagem inoculada pela saudade que espero ser recíproca.

Assistimos aqui no inverno crepuscular carioca, em nosso novo lar, as 12 pílulas de amor ao cinema que vocês docemente filmaram, e que para a nossa felicidade, aqueceram uma noite que prometia ser fria e melancólica. Os Ensaios de Cinema são uma viagem à nossa memória cinematográfica. É delicioso ver homenagens a Glauber, Helena Ignez, Agnés, Varda, Maya Deren, Muybridge, os Lumière, David Lynch, Humberto Mauro, Mario Peixoto, François Truffaut, Alfred Hitchcock, Orson Welles e Méliès. Como vocês fustigaram exemplarmente os fantasmas do cinema. 

Sim, o cinema é essa arte fantasmagórica onde feixes luminosos evocam imagens antes guardadas numa misteriosa película capaz de armazenar tantos mistérios e como diria Andrei Tarkósvski, de aprisionar o tempo. Somos encantados por tantas mentiras sinceras que pululam à nossa frente, e vem vocês e trazem essas lembranças tão caras para quem vive nesse território da ilusão, repletas de emoções verdadeiras. Por isso a vertigem de Truffaut e Hitchcock (dois amigos que provavelmente trocavam muitas missivas) estão contempladas em Ensaios de Cinema, assim como os delírios esquisitóides atordoantes que nos fazem lembrar de Lynch. O cinema definitivamente é mesmo para amadores. Tal como Yves Klein, e Pati o conhece bem, bem mais do que eu certamente, que artisticamente nos conclama a um salto no vazio do abismo. A arte está nesse interregno, entre o precipício e o chão (ou o mar), pois a arte não é sobre o absoluto, mas sim a interrogação dele. 

Me desculpem, meus amigos, essa carta era para ser mais amistosa, pois a saudade não deve ser alimentada com angústias artísticas e outras aparentes fragilidades. A ausência nunca é totalizante, nela é possível preencher a vida com matizes de pensamento e luz. Creio que sem querer fiz uma definição plausível sobre o cinema como fenômeno que concilia o etéreo e o concreto. Mas o que quero lhes dizer é que assistir Ensaios de Cinema me trouxe as vozes de vocês, a sensação de que é possível viver o fantasmagórico cinema. Fiquei pensando muito sobre a materialidade do cinema e fiquei a pensar que o meu (ou o nosso) apego à mídia física deve passar pelo poder do toque. Quando estou com um filme em DVD do Bergman na mão, eu o vejo e seu espírito perpassa por mim. Aqui na mudança de lar que faço no instante em que escrevo essa missiva, manuseio as caixas desses filmes que nos fazem sentir vivos, que podem a qualquer momento nos arremessar no tempo e isso me traz um alegre conforto. 

Creio ser imperdoável eu ter falado tanto até agora para quase nada dizer sobre o filme que vocês me enviaram tão calorosamente. Evidente que estou exagerando, afinal, o que fiz até agora foi falar o tempo todo inspirado nesses registros valiosos e apaixonados, que me despertaram o desejo de pensar cinema. O crítico normalmente caminha no contrafluxo, o de esboçar pensamento em uma arte ditada fluxo e fundamentalmente feita para ser sentida. O filme em projeção é algo vivo e verdadeiro, sua intensidade é ininterrupta. 

O cinema, como é sabido, é uma arte coletiva, tanto no seu processo de produção quanto na hora de sua exibição, embora seja algo que nos impulsione violentamente para uma reflexão quase sempre solitária. Cada um vê um filme a seu modo, juntando suas experiências únicas como uma camada a mais. Godard já mencionou isso, que a verdadeira história do cinema é também o apanhado de visões de cada espectador sobre os filmes que vê, isto é, um inventário impossível de se fazer. A homenagem que vocês fizeram a Helena Ignez e Glauber no primeiro ensaio, resgata a solidão de uma personagem e o seu desespero, cujo som faz acentuar a angústia de uma busca psicológica, como peça única em um jogo de xadrez incomum e imprevisível, jogado solitariamente. 

Tem algo que considero fundamental comentar com vocês de como achei significativo assistir a duas homenagens ao gênio David Lynch. Ambas são singelas e afeitas ao clima que o mestre tanto evocou. E adorei a menção à série Twin Peaks, pois ela mostrou o poder de inventividade de Lynch, de entrar na seara das séries e realizar o inesperado, uma viagem onde o tempo, a cor e a memória estão ali fragmentados como a vida nos apresenta em seu caos e desorganização. Ou como vocês sugerem, nos sonhos disformes e insinuantes, o gráfico como insurgência narrativa.  

E por falar em memórias, aproveito a oportunidade para agradecer o vídeo em homenagem a Humberto Mauro, que viagem linda de se viver. Ouvir a voz do mestre dissertando sobre cinema é deslumbrante, o quanto é crucial lembrar que o nosso cinema tanto deve sua existência a ele. A visão sublime de que cinema é cachoeira, uma força da natureza que cada realizador impõe a seu filme, com a capacidade de gerar uma natureza em si. E vocês traduziram isso com beleza, plasticidade, com sombras e força imagética, com trechos de filmes de Humberto invadindo a cena de vocês, fazendo essa cachoeira parecer infinita. Isso é viver o cinema, o que me parece é que o gênio de Cataguases vive em vocês, a cachoeira dele flui no rio cinematográfico de vocês.

Queridos amigos, creio que falar de cinema é a melhor coisa do mundo e foi isso que me levou para a crítica. Truffaut tinha razão de dizer que o cinema é mais do que a vida. Varda também devia concordar com essa assertiva. Se Humberto Mauro sugeriu a cachoeira, Varda nos trouxe a praia e seu desejo de não deixar nada em seu lugar. A paixão dela pelas telas, pelas janelas, enfim, pela amplitude. O filme de vocês traz isso à luz, além de lembrar que cinema trabalha o corpóreo e a experiência. Novamente a intervenção do corpo de Pati irrompe e atravessa pela obra de Varda, como espelhos da arte sobre a arte. Lembrar Varda é pensar na ressignificação da vida pela imagem e eu agradeço a vocês por sugerirem tanto em tão pouco tempo de um filme em tela. 

Eu sei que mais do que qualquer um, vocês sabem que o cinema só é possível se for feito. Sem coragem não há cinema, muito menos sem os corajosos que se lançam a fazer. Só existe a crítica porque há o trabalho dos realizadores. Por isso, o vídeo multitela sobre o cinema e as mãos é tão valioso, além de nos lembrar a importância do enquadramento e do close no cinema. E Mario Peixoto como o nosso ícone vanguardista e misterioso, o homem de um filme (genial) só, teve foco nas amarras, que tanto impossibilitaram o mestre do experimento a realizar mais filmes. Fiquei assombrado o quanto melancólico é esse filme, inclusive, o quanto triste pode ser um olhar. 

Vendo a homenagem aos filmes dos Lumière e vivendo os experimentos de Muybridge, esses pioneiros do cinema, atestamos o quanto eles nos possibilitaram ver o cinema como movimento, espetáculo e projeção. Eu entendo o desejo de Pati (que nos representa, afinal quem que ama o cinema não queria estar naquela estação de Ciotat) de invadir aquela estação pioneira, de se misturar com os transeuntes e sentir o nascimento dessa arte, hoje com tantos amantes e adoradores. O cinema é espírito e esse vídeo nos remete a isso, ao dado espiritual, à idolatria fantasmagórica e religiosa por detrás desse culto moderno. 

Mas cinema pode inspirar sentimentos de melancolia e nostalgia? Creio que as imagens e música da homenagem a Truffaut não deixam dúvidas a respeito. Imagens do presente, do carrossel misturados com as vertigens de Os Incompreendidos são poderosas. O clássico, o moderno e a Nouvelle Vague francesa em um único vídeo. Senti mais saudades ainda de vocês e de uma França que jamais conheci presencialmente, mas que conheço tanto pelo cinema. Quando Pati corre na direção da cinemateca francesa (esse templo fundado por Henri Langlois), lugar de inspiração e que colocou a ideia de preservação do cinema na ordem do dia, nos abre a perspectiva de que ali podemos acessar a história do cinema e como isso é bonito e gostoso de sentir.

Eu sei que o filme de vocês não é longo, mas quero dizer o quanto eloquente ele foi para mim. Bateu em mim como um salto no vazio, um mergulho na magia e na vertigem do cinema. O curto vídeo em homenagem a Alfred Hitchcock me fez querer viver nele, pois é a vertigem do cinema que nos hipnotiza e nos inspira a vivê-lo involuntariamente. Adorei as cores inebriantes e oníricas desse vídeo, tudo é tão irreal e fantasioso, como um sonho estranho que não queremos acordar. Não casualmente, o cinema adorou sempre as teorias freudianas e a hipnose. Mas como é bom se perder nesse turbilhão de mistérios, fantasmas e luz (pois sem ela o cinema não existiria). Vejo esse Ensaia de Cinema como um encontro sem hora marcada da minha cinefilia com a de vocês.


Eu não sei se vocês, queridos Cavi e Pati, são afeitos a missivas longas. Creio que esta já se alongou por demais, mas não posso me despedir de vocês sem falar no vídeo em homenagem a Maya Deren, afinal, a carta de Pati a ela que me fez pensar e motivou chegar até aqui. Escrever cartas sempre tem um quê de loucura, incertezas e dúvidas para quem escreve. Será que a mensagem chegará ao destinatário? As cartas são peças para serem jogadas ao mar ou para serem levadas pelo vento. Elas pressupõe papéis e outros acessórios materiais, embora seu conteúdo seja mais leve que uma pluma, são etéreos e perigam se desmanchar no ar. A minha saudade vai nela, assim como o desejo do reencontro, mas da vida nada controlamos e assim tudo segue à nossa revelia. O que levou Pati ao encontro espiritual com Deren foi o amor. E esse vídeo é sobre ele. O cinema é essa forma mais doida e terna de se cruzar espíritos. Os da Maya com Pati, e os de Pati conosco. O amor nos leva além, não só a Amsterdam, a Paraty e ao coração do amantes do cinema. A busca já é o fim, por isso jamais simplesmente morremos. Com o cinema nascemos cada fez que a luz do projetor acende nossos fantasmas. Bergman sabia bem disso e registrou tudo isso belamente em Persona. Felizmente, no cinema nunca estamos sozinhos. 

Fiquem em paz, viva o cinema e um beijo em vocês.


Comentários

  1. Que carta maravilhosa, e eu que não vi essas pérolas do cinema patcavidiano, espero poder em breve, parabéns e muiiitos bjs

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