Texto por Marco Fialho
Um filme quase sempre resulta de uma mistura entre uma camada subjetiva e outra objetiva. Em Cinema do Desejo esse fenômeno fica bem evidente. O documentário parte das experiências da transsexual Stella Lizarra, em meados da década de 1980, no Cine Orly, situado na Cinelândia, principal polo exibidor carioca desde às origens do cinema no Brasil, ainda lá no final do século XIX. Assim, o espaço e a experiência se entrecruzam para que adentremos em um pedaço de uma história envolta em tabus, segredos, interdições, e sobretudo, memórias.
Cinema do Desejo é dirigido pela própria Stella Lizarra, em parceria com Cavi Borges, mas o filme traduz muito a personalidade assertiva e inteligente da diretora que também é franca narradora e protagonista do documentário. A direção opta por dividir a obra em capítulos, cujos avisos são anunciados em charmosos letreiros afixados comumente nas marquises dos cinemas de rua de antigamente. A criatividade é uma das marcas de Cinema do Desejo, que flerta com um desejo narrativo de trazer à tona uma história praticamente desconhecida, estigmatizada e obliterada do nosso cinema.
O mais interessante em Cinema do Desejo é a de dar ao espectador a oportunidade de saber o que rolava nas internas do Cine Orly, em uma época em que o preconceito em relação à comunidade LGBTQIAPN+ se apresentava na esfera do intransponível, e como diz Stella, a própria entrada em descida já evidenciava o caráter underground do local. É uma delícia assistir Stella contando suas vivências no Cine Orly como frequentadora e depois como baleira, de sentir quantas relações se fortaleceram em meio a um universo utilizado para satisfação de prazeres urgentes, para corpos pouco aceitos fora do ambiente do Orly.
É bastante criativo como Stella e Cavi conseguem recriar essa época a partir de pouquíssimos elementos, ainda mais que o Cine Orly da época não era propício que câmeras adentrassem para registrar o que acontecia por lá, dado ao aspecto proibido do local naquele contexto dos anos 1980, evidentemente, sem a tecnologia dos celulares android que temos hoje para registrar algumas indiscrições. Por isso, é a voz de Stella que promove a nossa viagem ao proibido, ao universo das pegações entre gays e transsexuais, aos tipos que buscavam prazeres imediatos, à geografia do local e outros tantos detalhes. Alguns artifícios cinematográficos, como os dos efeitos gráficos, são utilizados para viabilizar a escassez de imagens de arquivo, e há também a utilização de outros espaços para simular o passado, como o uso dos banheiros do Estação, onde vemos Stella minuciosamente se montando.
Quem conhece Stella Lizarra sabe da sua propensão a falar, o quanto traz com ela um enorme prazer da conversa. Quando nos encontramos no Estação, quase sempre conversamos por horas e o papo flui como um rio caudaloso, como se o tempo não existisse. Em Cinema do Desejo essa satisfação da conversa está ali pleno. Me senti exatamente no hall do Estação, bebericando um café e ouvindo as histórias maravilhosas que Stella sempre nos brinda. O filme contém esse dado verdadeiro, um sentimento genuíno de que estamos conversando com Stella, e por isso, os vinte e cinco minutos transcorreram como 10 minutos para mim.
Cinema do Desejo ainda me remeteu a um tempo saudosista, lá da minha infância, quando eu ia à Cinelândia, pois uso óculos desde os sete anos e meus pais me levavam na pequena ótica do Seu Pedro, que era na Rua Alcindo Guanabara. Tanto o Rival quanto o Cine Orly eram quase em frente à ótica e lembro que ficava curioso sobre ambos os espaços, até mais no Rival que nos anos 1970 tinha shows de travestis, algo que eu achava curioso, e me chamava a atenção os cartazes dos anúncios, pelas cores e por ser diferente. Eu tinha lá meus 7 ou 8 anos e meus pais diziam que era um show de artistas, mas que não era para minha idade. Mas aquele clima mundano me agradava e instigava bastante, pois aquela rua tinha (e ainda tem) os botequins pés sujos, os chamados de cuspe-grosso. Cinema do Desejo me ativou muito essa lembrança, mesmo que hoje, depois de mais de 50 anos passados, essa memória já esteja bastante enevoada e fugidia, sobretudo porque o filme tem essa aura nostálgica também para Stella e isso está presente na sua fala sobre as amizades e a rede de ajuda que existia entre as frequentadoras, e principalmente, entre as trabalhadoras.
Mas eu iniciei essa minha análise falando sobre objetividade e subjetividade, o quanto que Cinema do Desejo me fustiga a pensar nesse viés do cinema, de imbricar essas duas perspectivas. O filme nasce do desejo de se narrar a história de uma vida e o quanto um determinado espaço foi formador e determinante para ela, no caso específico, um pequeno cinema situado em um misterioso subsolo no Centro da cidade do Rio de Janeiro. É incrível, talvez a minha parte favorita do documentário, quando Stella, grande conhecedora da arte cinematográfica, uma intelectual vastíssima diga-se de passagem, começa a dissertar sobre os filmes eróticos franceses, hoje completamente desconhecidos, e desperta uma curiosidade imensa sobre essas obras libérrimas que só os anos 1970 soube produzir, no ápice da liberação sexual e antes da propagação do vírus da AIDS no mundo.
Ouvir Stella sobre o Cine Orly é realmente fascinante, em especial por Cinema do Desejo trazer a subjetividade inerente a corpos marginalizados e estigmatizados socialmente. O carisma de Stella evidente é o ponto alto e sua inteligência em narrar uma história vinda do subterrâneo do nosso cinema erótico e que discute a vida dos gays e transgêneros no Brasil só faz crescer a importância desse documentário. Um cinema verborrágico, que tal como Stella, aprecia o falar, mas que versa sobre a pluralidade dos prazeres e que amplia a ideia de desejos para além do que supõe as conservadoras convenções sociais.
Maravilhoso texto. Traduz exatamente o ser que representa Stella Lizarra, curtíssima, ótimas conversas e uma vivência que nos traz ainda mais sobre esse universo tão pouco traduzido . Bravo!!
ResponderExcluirFantástico, Stella é minha amiga irmã. Interessantíssima, um gênio nas artes e também na literatura.
ResponderExcluirO documentário é incrível, um.passei pela história, pelo dia a dia de uma época. E a crítica faz jus ao filme.
ResponderExcluirDelicia de resenha! E parabéns para Stella, essa guerreira de tantas lutas!
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