Pular para o conteúdo principal

AMORES À PARTE (2025) Dir. Michael Angelo Covino


Texto por Marco Fialho

O cinema clássico normatizado pelo gênio de David W. Griffith foi uma transmutação das teorias do teatro aristotélico e isso já foi largamente difundido e comentado nos livros que estudaram a origem do cinema como forma artística e narrativa. Evidente que essa visão clássica aos poucos absorveu sem maiores traumas, sublevações modernas e contemporâneas de linguagem, em especial depois da 2ª Guerra Mundial, com os movimentos de Nouvelle Vague mundo afora, inclusive no próprio Estados Unidos, com Cassavettes e a chamada Nova Hollywood. 

Filmes como Amores à Parte trazem essas incorporações modernas, ainda mais que o tema das relações não monogâmicas está na ordem do dia e o filme inicia numa discussão entre o casal Carey (Kyle Marvin) e Ashley (Adria Arjona) numa estrada a caminho da casa do casal Julie (Dakota Johnson) e Paul (Michael Angelo Covino), que instaura uma crise entre o casal viajante, depois que Ashley vê a morte de uma jovem em um acidente de trânsito. Será que ela viveu os seus desejos mais profundos ou morreu acreditando no discurso careta da vida "normal" e monogâmica? Esses pensamentos a fazem pirar, mas o mais estranho é que ela confessa ao marido ter tido vários amantes (isto é, na prática sua monogamia sequer existia, só na teoria).

Amores à Parte se define pela comédia de costumes, como uma obra que escolhe o exagero como caminho de diálogo com o público. Assim, as cenas são caracterizadas pela exacerbação, uma briga dura alguns minutos e chega a enjoar, como a de Carey com Paul. Quando Ashley e Carey acertam levar uma relação não monogâmica, a casa fica apinhada de ex-amantes que Ashley acumula pelo caminho. Algumas discussões sobre relacionamentos são interessantes, mas as subversões narrativas de Amores à Parte nunca chegam à página dois, sempre se arrefecem, nunca se aprofundam. 

O mais engraçado é o quanto a trama vira de ponta à cabeça, revira novamente, para enfim se encerrar quase como começou. Se Amores à Parte começa com pitadas de ousadia, inclusive as interpretações buscam quebrar os padrões das comédias estadunidenses, ao final tudo lembra uma comédia romântica que já vimos tantas vezes no cinema deles. Chocar para depois voltar ao padrão, esse parece ser a tônica do filme, com toques indeléveis de um cinismo programado para durar até a página dois.

No fim, nada soa mais conservador do que o pretenso progressismo de Amores à Parte. De certo, nota-se que os atores e atrizes estão à vontade e o fato do diretor Michael Angelo Covino integrar o elenco estelar, colabora para que os atores fiquem soltos e entreguem realmente alguns momentos engraçados, embora outros fiquem enfadonhos e repetitivos. Se inicialmente havia uma indicação de que essa seria uma comédia com traços mais europeus, com uma ênfase numa encenação que provoca um estranhamento no espectador, no meio do caminho as coisas desandam e a tal troca de casais acaba não funcionando tanto assim, e a essa altura, o que era para ser transgressor termina como mais uma comédia estadunidense um pouco melhor acabada e burilada, mas essencialmente boboca e pouco reflexiva.  

A maior herança que o cinema norte-americano carrega é a que Griffith, lá nos anos 1910 sugou do teatro. A cada filme, a cada ano e década essa tradição se firma. A ênfase aristotélica nos três atos se fortalece como o motor da narrativa clássica, com seus pontos de virada bem delineados, tal o escopo estabelecido pelo mestre Sid Field em seus livros sobre roteiro. Amores à Parte parece ser um filme a buscar novos caminhos e modelos narrativos, mas acaba por reafirmar os velhos métodos com uma capa moderninha e uma aparência transgressora. Pode até virar um hype, para a alegria momentânea do mercado, mas em breve será mais um a adentrar e engrossar a gaveta dos filmes esquecíveis vendidos como fora-de-série pela quase sempre insossa indústria hollywoodiana.   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

O PASSAGEIRO: PROFISSÃO REPÓRTER (1975) Direção de Michelangelo Antonioni

Entra no carro, nós seremos o passageiro Passearemos pela cidade à noite Passearemos pela traseira rasgada da cidade Veremos a brilhosa e oca lua Veremos as estrelas que brilham tão claras Estrelas feitas para nós esta noite                                       Trecho da música "The passenger", de Iggy Pop   Por Marco Fialho Identidades feridas em um mundo devastado Incentivado pelo lançamento de 3 obras essenciais do mestre Michelangelo Antonioni em blu-ray pela Versátil Home Vídeo, fiquei tentado em escrever sobre um dos filmes que mais aprecio no cinema: "O passageiro: profissão repórter", um dos filmes mais comentados e discutidos nos cursos de cinema, em especial devido ao plano-sequência final. O título dado no Brasil desde os anos 1970 é mais um daqueles inapropriados. O original, "The  passenger" (que adotarei aqui) ,  é brilhante por permitir uma leitura ampliada ...