Texto por Marco Fialho
O novo trabalho de Anna Muylaert, A Melhor Mãe do Mundo, me despertou emoções díspares durante a sua projeção. Em primeiro lugar, creio ser importante pontuar que esse é um filme que mistura abertamente realidade e fantasia na sua concepção ao retratar a vida de Gal (Shirley Cruz) e seus dois filhos (Rihanna e Benin) na busca de uma libertação maior: a da violência doméstica advinda de uma relação abusiva com o marido.
O abusador da vez é Leandro (Seu Jorge), que aparece na segunda metade do filme, onde se é possível compreender a amplitude do problema em que está metida Gal. É nessa parte ainda que a discussão acerca da aceitação da violência diária acontece, em especial com Val (uma surpreendente atuação da cantora Luedji Luna), naquela corriqueira ideia de que se a vida é ruim com o agressor, pode pior sem ele.
Mas A Melhor Mãe do Mundo tem uns pontos que podem ser questionados. Em vários momentos, o filme lembra a obra de Roberto Benigni, A Vida é Bela, onde o pai judeu e prisioneiro do nazismo que recria a dura realidade do holocausto forjando um jogo como contraponto para sobreviver no inferno de um campo de concentração. Guardada as devidas proporções, Gal não deixa de fazer o mesmo ao fazer de sua fuga de casa uma simulação de viagem com os filhos.
Essa pulsão de fantasia paira sobre quase todo o filme de Anna Muylaert, inclusive nas situações as mais drásticas. O maior exemplo disso é quando ela imagina está sendo socorrida pelo cavalo de São Jorge (padroeiro do Corinthians) para levá-la até o Itaquerão para ver um jogo do Timão. Evidente que esse é um atributo bem brasileiro, o da superação e da resiliência frente às agruras vindas do cotidiano, mas essa fantasia acaba soando muito artificial e forçada, quase que uma necessidade de que tudo precisa acabar bem, sobretudo dentro do espectro de uma narrativa que se pretende clássica.
É sempre importante frisar que o filme de Anna Muylaert está discutindo uma situação de vulnerabilidade de uma personagem feminina, sem recursos financeiros e preta. Esse viés está posto em cada cena, do início ao fim de A Melhor Mãe do Mundo. Por isso, creio que o elenco seja o que mais fortalece a mise-en-scène, tendo Shirley Cruz como o principal dínamo nessa relação dramatúrgica, temperando a todo instante, alegria, desespero, fragilidade, força e coragem. O momento da visita de Leandro na casa da prima, onde Gal se abriga em seu percurso de fuga, é para mim o mais interessante ao ser o mais realista e duro de todo o filme. O confronto entre ela e o marido é fundamental para o público sentir as barras que Gal precisa encarar para sobreviver a um relacionamento tóxico.
Entendo que o roteiro e a direção de Anna Muylaert quer salientar a fantasia como um elemento precioso de resistência de Gal, ainda mais porque no meio disso tudo tem as crianças, mas o que prevalece quase sempre é o clima em que tudo parece maravilhoso. A cena da chegada de Gal na ocupação mostra muito bem isso. A ocupação se descortina como um lugar idílico, onde trabalho, alimentação, moradia e solidariedade se eleva a qualquer outra forma de vida. Claro que no cenário vivido por Gal, a ocupação se encaixa perfeitamente e funciona como um alívio imediato, mas o filme vai além disso e constrói algo mais sólido, como uma solução de vida, sendo a ocupação, por natureza um local transitório e de luta.
Quero salientar que esse espaço de excesso da fantasia está posto desde o início de A Melhor Mãe do Mundo, basta lembrar que um banho em um chafariz público torna-se outro momento de construção idílica da direção, com direito à câmera lenta e música empolgante. Mas tem ainda o instante Itaquerão, onde o imaginário lúdico da torcida a todo o vapor, no auge da euforia. Esse sentimento de extravasamento adentra o filme e tira a trama do realismo e a arremessa para algo de mágico. Essa fantasia esvazia poderosos argumentos críticos que o filme carrega e o leva para uma ideia de que a vida é sempre boa e positiva se assim acreditamos, o que subverte contundentemente o estado material que a obra está expondo. Gal e os filhos moram um período nas ruas, expostos a toda os perigos do meio e o filme está sempre a postos para mitigar essa situação. Ela rouba supermercados, toma banho em chafariz, passa fome e tudo é tratado como uma fábula contemporânea de uma mulher valente, onde as adversidades são efêmeras e de fácil superação.
Antes que chamem o crítico de avesso à fantasia, esclareço que esse não é o problema e apenas estou a lembrar que tanto a narrativa fantasiosa quanto a realista são construções, e ambas como tais, podem soar orgânicas ou artificiais em um determinado filme, e é disso que estou a falar acerca de A Melhor Mãe do Mundo, que na minha visão a direção se obriga a colocar em seu realismo um tempero lúdico e fantasioso. Longe de parecer gratuito ou implicante, meu comentário é tão somente reflexivo ao que está posto na obra. A crítica não almeja ser a dona da verdade, apenas lançar pensamentos a partir do que foi visto em tela.
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