Texto por Marco Fialho
Ouça o disco junto com o texto:
https://youtu.be/U2Ce-bMkGK8?si=wABtmHc9LZUJ-6od
Quando Djavan chegou até a mim com sua voz única e aveludada, suas composições me encantaram de súbito, com seus desenhos melódicos e rítmicos sedutores. O seu veio principal ainda era o samba (Cerrado, Flor de Lis e Fato Consumado) e as melodias românticas (Meu Bem-Querer, A Ilha e Faltando um Pedaço). Todo esse repertório me arrebatou em um show que vi do então jovem compositor no Sesc Tijuca, lá no início dos anos 1980. Eu tinha meus 15 anos e morava quase ao lado do Sesc e me esforçava para não perder os shows que rolavam por lá.
Mas foi só dois anos depois, em 1982, que Djavan passou a ocupar um lugar realmente especial no meu coração musical. Eu morava então em um apartamento no Grajaú e enlouquecia os vizinhos ouvindo música altíssima de maneira para lá de empolgada. Zé Ramalho, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Thelonius Monk, Alceu Valença, Elis Regina, Gal Costa, Egberto Gismonti, Dexter Gordon, Geraldo Azevedo, Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges e João Bosco eram figurinhas fáceis, estavam sempre a atormentar os ouvidos dos meus vizinhos. Como eu era simpático, eles comentavam sorrindo da altura do som, deixando assim seus protestos educados sobre os meus gostos musicais.
Luz, assim se chamava o LP de Djavan, esse estranho compositor alagoano tão chegado no samba, ritmo não muito comum nos artistas vindos do Nordeste do país. Apesar de já ter ido no show, eu ainda não tinha nenhum disco dele em minha coleção. Contudo, esse era um disco diferente na carreira dele. Não havia os sambas que o popularizaram e as músicas românticas assumiram uma faceta mais pop, como Pétala, que abre o disco, uma das mais lindas de sua imensa lavra de composições.
Abrindo o lado B do disco, Djavan apresenta Samurai, música com um suingue muito próprio, que não deixava de ser uma música romântica, embora bem diferente das anteriores que havia composto até então. De repente, no meio da canção eis que surge uma harmônica furiosa e potente, nada mais nada menos do que tocada por Steve Wonder, um dos maiores músicos e compositores da música black dos Estados Unidos. Wonder se infiltrava na canção como uma cobra que serpenteia em um solo cheio de curvas melódicas. A voz de Djavan parece mais solta do que nos discos anteriores, como se o ato de gravar em um estúdio em Los Angeles o contaminasse com uma influência do modo de cantar dos negros daquele país.
Creio ser neste disco que Djavan se coloca como um cantor, um intérprete mais vigoroso. A confiança estava em alta e os riscos a correr eram assumidos com coragem e convicção. O compositor alagoano foi convidado pela CBS para gravar o álbum com a produção de Ronnie Foster, um nome expressivo da soul music norte-americana. Logo depois de Pétala, Djavan engata Luz, a canção que talvez seja a mais suingada de todo o disco e que tem a presença do solo deslumbrante e fluido do consagrado flautista Hubert Laws. E se alguém ainda duvidava que a voz de Djavan estava livre, leve e solta, em Nobreza essa interrogação se desfez por completo. A voz de Djavan se esparrama sem medo de ser feliz ao narrar uma história de amor e amizade entre dois homens. Ao som de orquestra suave e um piano rascante de Jorge Dalto emoldurando os contornos que Sizão Machado ponteia no contrabaixo, Djavan canta como só os grandes conseguem cantar.
Luz representa o nascimento oficial de um monstro sagrado, de um músico e compositor sem limites, com uma divisão musical própria, inventiva e marcante. Só de ouvir um compasso da música de Djavan é possível saber que a mesma é de sua autoria. Depois de Luz ficou difícil de negar a esse compositor um lugar alto no panteão da nossa música. Esse foi um disco divisor de águas, que ainda trouxe com ele uma parceria que já havia sido desenhada há 7 anos antes em um Festival Abertura de Música Popular, quando Caetano Veloso proclamou Djavan uma realidade musical brasileira incontestável e de talento infinito. O compositor baiano simplesmente gravou junto com Djavan o mega sucesso Sina, onde o alagoano retribui a amizade criando o verbo caetanear como justa homenagem.
O sucesso de Luz levou Djavan a cantar no Estádio de Remo da Lagoa, em um show com um grande público presente para ratificar o reconhecimento do público e do mercado fonográfico. Eu estava lá, depois de convencer meus pais a me acompanhar nessa linda aventura pela música rica e doce de Djavan. Não lembro de outra época mais musical de minha vida, quase não estudava, só queria chegar do colégio e escutar os LPs que comprava na loja da Mesbla do Passeio, no Centro ou na Hi-Fi, do Shopping Rio Sul. Essa foi uma época solar em minha vida, em que a música iluminava minhas longas tardes juvenis.
De certa forma, esse disco do Djavan serviu para amenizar as dores de um jovem que amava futebol e viu o sonho de uma Copa do Mundo escapar depois de uma derrota insólita para uma seleção italiana muito inferior à nossa em julho de 1982. A seleção brasileira era repleta de craques como Zico, Sócrates, Falcão e Junior, ídolos incontornáveis. O disco fora lançado em agosto, perto do meu aniversário e eu o comprei como um presente. Os caminhos da vida são assim, imprevisíveis. Às vezes, a dor e a alegria caminham perto uma da outra. Ainda bem.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!