Texto por Marco Fialho
Antes de qualquer imagem ser vista, suavemente escutamos o som macio do rio, e logo a seguir, o som de um barco. Assim somos transportados para o universo de Manas, o impactante filme paraense, filmado no rio Tajupuru na Ilha do Marajó, dirigido brilhantemente por Marianna Brennand. O melhor de Manas é o fato dele ser um filme-denúncia que não abre mão da esperança e da poesia.
Manas é um convite à imersão numa dura realidade, em um local distante dos grandes centros, que relata fatos tristes e muito comuns que acontecem em diversos rincões brasileiros. A trama gira em torno de Marcielle (Jamilli Correa, numa interpretação impecável), uma menina prestes a adentrar na adolescência e que vive em uma palafita com os pais e mais 4 irmãos. Sua irmã mais velha, Claudia, já zarpou do lugar, sem deixar vestígios sobre seu paradeiro.
Um dos pontos mais interessantes de Manas é a forma com que a diretora vai nos apresentando cada detalhe do universo abordado, assim como as suas relações afetivas, antes mesmo de inserir os conflitos que lhes são inerentes. Observamos as meninas colhendo o açaí, principal fonte nutricional da região, os triturando e o consumindo no cotidiano. O rio é outro lugar crucial, de onde também se retira alimentos, além de servir para o banho e o lazer.
Marianna Brennand esbanja sensibilidade ao narrar uma história em que o papel social das mulheres é altamente vulnerável e sob o domínio constante dos maridos. A vulnerabilidade é tanta que o pai das meninas é quem as inicia brutalmente na vida sexual, antes mesmo de caírem na prostituição pelas balsas que levam e trazem mercadorias entre a ilha e Manaus. Essa é a sina das mulheres nessa ilha que esconde uma situação de grande absurdo social e que Marianna Brennand corajosamente traz à sociedade por meio da narrativa cinematográfica.
A ilha traz ainda uma sensação de aprisionamento dessas personagens, para quem o restante do mundo é uma fantasia distante, que se apaga tanto quanto a televisão alimentada pelo fugidio diesel do gerador que a mantém ligada. São relações frágeis que estão sempre por um triz, tão flutuantes quanto as casas em que moram, edificadas sob o rio.
Manas é marcado por uma fotografia atenta a escuridão do local, sem luz elétrica e inteiramente iluminado por lamparinas a diesel, que tornam as cenas pertinentes e sombrias ao revelarem o que ocorre nos subterrâneos do dia e da noite do lugar, quando tudo o que se vê são as frestas de um mundo opaco e opressor.
Cada personagem evoca tanta verdade e organicidade em Manas que chega a chamar a atenção. O trabalho de Renê Guerra com o elenco é de uma sutileza sem igual, em especial o que faz com Jamilli Correa e com Danielle, a mãe de Marcielli (Fátima Macedo) e Marcílio (em mais um trabalho impecável de Rômulo Braga), responsáveis pelas melhores cenas do filme. O silêncio feminino em muitas das cenas soa como um grito para nós que assistimos tudo com indignação. Indignação é a melhor palavra para definir o que sentimos quando somos mostrados a esse mundo cruel, opressor e altamente violento para as mulheres.
Um dos grandes destaques de Manas está na movimentação da câmera, principal elemento da mise-en-scène do filme. Em várias sequências a câmera parece seguir o balanço de um rio, com suas oscilações constantes que remetem ao desequilíbrio tanto do lugar quanto das relações familiares e não familiares. Essa câmera na mão suscita uma espécie de vertigem que traduz o incômodo de Marcielli diante as investidas do pai em seu corpo em processo de amadurecimento.
A cada nova cena, Manas interroga o que é se descobrir mulher em um ambiente nada acolhedor, onde a masculinidade tóxica detém o domínio e impõe suas práticas abusivas. Quando Marcílio ensina Marcielli a caçar quem em verdade está sendo caçada é ela. O que seria a princípio manifestações de afeto do pai, vão se transformando em assédios sexuais nada velados. Marianna Brennand é sempre muito sutil ao trazer essa violência para as cenas, para que a personagem não seja estuprada também pelo cinema.
A opressão patriarcal surge a todo instante, em todos os lugares, na balsa, no bar e em casa. Essa é a sina das mulheres que ali nascem e Marcielli demonstra muita força para fugir dessa realidade, em especial depois que encontra amparo na personagem de Dira Paes, uma policial que pretende combater as agressões que os homens infringem cotidianamente as mulheres da região.
Marianna Brennand lança mão ainda da força do domínio religioso sobre os corpos, do culto evangélico como elemento castrador e hipócrita perante aos abusos patriarcais que vemos a todo instante irromper na tela. Se Manas é potente quanto denúncia social, não fica atrás como cinema. Cada cena possui um silêncio aterrador, costurado por um delicado olhar que respeita o tempo do lugar sem se esquivar das brutalidade que lhe é inerente.
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