Pular para o conteúdo principal

LISPECTORANTE (2024) Dir. Renata Pinheiro


Texto por Marco Fialho 

Lispectorante é um filme rico, cheio de camadas, simbolismos e significações. A presença inebriante da atriz Marcela Cartaxo como protagonista também faz aumentar a riqueza dessa obra. Esse é um cinema fascinante, de celebração de um Recife fascinante, e mais especificamente do tradicional e central Bairro de Boa Vista, uma região comercial, com antigas edificações e de características multiculturais. Nela se situa a casa que foi de Clarice Lispector, escritora ucraniana que adotou o Brasil como seu. Hoje, esta casa encontra-se bem detonada, mas ainda assim, assumirá um papel simbólico em Lispectorante. Na praça principal do bairro, tem uma estátua da escritora sentada em um banco.  

Marcela Cartaxo interpreta Glória Hartman, uma artista plástica cujas iniciais coincidem com a personagem mais famosa de Clarice Lispector, A Paixão Segundo GH. Gloria retorna a Recife, depois de uma separação conjugal e vai morar na casa da tia. Glória é o papel mais esplendoroso da carreira de Cartaxo, ela está pulsante, com a libido a mil, creio ser a personagem mais erotizada dela e como é bom vê-la nesse lugar, que habitualmente lhe é negado. Quem melhor do que ela, nossa eterna Macabéa, para representar essa personagem tão fascinante como Gloria. Mas o erotismo está presente também na cidade, que pode ser vista como uma personagem dessa trama, com suas cores e ruas em polvorosa, com a simplicidade transbordante da cultura popular. É nesse universo que Gloria evocará figuras do passado que ela vê em fotos da casa da tia, de uma Recife nostálgica que só existe na memória e nos sonhos de raros românticos. Gloria dará início a um processo impregnado por uma fantasia libertadora, em que desejo e memória se encontram amparados pela poesia de uma Clarice Lispector lida com uma visão contemporânea.

A diretora Renata Pinheiro (Carro Rei e Açúcar) faz de Lispectorante uma fábula poética e fantástica, que perpassa pelo realismo para desembocar em um universo mágico. A casa abandonada de Clarice Lispector se torna um lugar tomado pelo simbólico, depositário de memórias e energias do passado, um tipo de não-lugar, um espaço onde a imaginação vive e responde à cidade real, acomodada no seu cotidiano amorfo, e ideal para o exercício onírico de Glória. A arquitetura das ruas a da casa de Glória são compostas por uma imagética tradicional, decadente e urbana, que se contrapõe a uma vivência impregnada pelo contemporâneo repleto de mudanças e dinamismo. Gloria Hartman atualiza referencialmente a versão literária para um ambiente urbano e uma personagem em busca do encantamento.

Umas das alegrias de Lispectorante é ver o encontro entre Gloria e Guitar (um Pedro Wagner inspirado), duas almas livres em busca de explorar as delícias da vida. Logo no início, Renata Pinheiro trabalha o simbolismo de um pipa vermelha ligada a Gloria e um saco amarelo como relacionado a Guitar. Na noite em que os dois se descobrem intimamente, a diretora junta o saco e a pipa em um fio de corrente elétrica, elementos que reforçam a personalidade delirante dos dois personagens. Guitar traz ainda a pujança da riqueza poética da música, em seu grupo que se chama Lispectorante a reinventar uma Lispector na contemporânea recifense em letras inspiradas na escritora.

Se o etéreo se faz presente em Lispectorante, muito se deve à fotografia de Wilssa Esser, que faz o filme alcançar uma atmosfera de ludicidade, por meio de uma mistura de sépia e do verde que instaura uma áurea irreal em uma cidade ao mesmo tempo tão viva e táctil. O próprio espaço abandonado da casa de Clarice é altamente imaginativo, um tipo de delírio de Gloria, que ali, mirando por uma fresta uma profusão de cores e sons pesados, comandados pela grande atriz Grace Passô, uma personagem pra lá de simbólica. Lispectorante se permite a essas liberdades e se curva às viagens de uma mulher que cansou de apenas racionalizar a vida. A câmera de Renata se encanta por Cartaxo, a vê como um vulcão em permanente jorro e se entrega inteiramente a ela. A recriação desse espaço passa pelo buraco aberto pelas bombas da guerra que obrigou Clarice fugir da Ucrânia, parte da idealização de Gloria.          

Uma das sequências mais belas de Lispectorante é quando Gloria e Guitar se hospedam no hotel que recebia Carmen Miranda em suas passagens por Recife. Enquanto ouvimos da camareira os detalhes da mobília da época, Cartaxo dá o seu show como se conseguisse imaginar os pormenores da cantora no quarto. Aqui também Grace Passô e o buraco interagem como um novo exercício criativo de Gloria, onde os sonhos se encontram com os pesadelos sem que se marque um horário. Em Lispectorante, o cinema encontra com a literatura, a teatralidade dos corpos, a música, a dança e a arquitetura para alcançar um patamar artístico sem hierarquias, em que a liberdade do espírito alça vôos em nome de uma reinvenção pulsante dos personagens e da cidade.

Lispectorante é o simbólico do poder de invenção do artista, de criar palavras, imagens, sons e o que mais for aprazível a ele. A conjugação erótica está presente no olhar de Glória/GH/Cartaxo, numa simbiose com um território ditado pelo movimento e transformação. Renata Pinheiro se embrenha nessas possibilidades e realiza um filme repleto de vida, encontros, perguntas e de plenitude da alma feminina. E ainda tem Cartaxo, que só não vê quem não quer, o quanto ela já é, há algum tempo, um dos maiores presentes cênicos da nossa dramaturgia. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...