Pular para o conteúdo principal

HOMEM COM H (2025) Dir. Esmir Filho


Texto de Marco Fialho

Como em qualquer cinebiografia ficcional, Homem Com H depende em grande parte do êxito da interpretação do seu principal personagem. E realmente, o filme dirigido por Esmir Filho tem em Jesuíta Barbosa um amparo consistente. Cena a cena vamos nos deixando levar pelo trabalho do ator na pele de Ney Matogrosso. O ator pernambucano demonstra estar vivendo uma grande maturidade artística nesse papel, que provavelmente é o maior desafio dramatúrgico da sua carreira. 

É visível que o maior obstáculo de Jesuíta na composição desse personagem tão complexo da nossa arte é o Ney da juventude, o de antes da fama, pois não há uma referência de imagem pública conhecida. O mesmo já não se pode dizer da época a partir dos Secos e Molhados, quando Ney apareceu para assombrar um Brasil dominado pelo conservadorismo de uma ditadura militar. Para compor esse Ney mais jovem, o ator contou com a colaboração tanto do próprio cantor quanto do livro autobiográfico "Ney Matogrosso - Vira-lata de raça", uma obra de memórias do artista. Dá para sentir nessa parte da vida de Ney, um Jesuíta mais inseguro, ainda em busca de acertar o tom do personagem. Mas do Secos e Molhados em diante Jesuíta arrasa, até assustadoramente, como um Ney Matogrosso que conhecemos bem a partir do sucesso na televisão e de imagens de shows performáticos maravilhosos e encantadores. Não há quem não se seduza pelos rebolados suingados de Ney. 

O filme de Esmir Filho traça a trajetória de Ney pelos conflitos com um pai agressivo e inconformado com o sentido de liberdade do garoto, que vai durar a vida toda em seu esforço por se afirmar como um artista incomum, que seguiu por caminhos próprios desafiando censura e a visão de gênero da sociedade conservadora nos anos 1970 em diante. Homem Com H se constrói pela ótica coerente do Ney como artista e pessoa e não desvincula uma da outra, e isso talvez seja o maior acerto tanto da direção quanto do roteiro, ambos assinados por Esmir Filho. 

Hermila Guedes interpreta a mãe de Ney, Dona Beita, que apesar de sua boa composição, tem aparições rarefeitas na trama do filme, o que é uma pena, porque sempre foi um importante ponto de apoio à carreira artística e emocional do filho. Já Rômulo Braga está muito bem no papel do Seu Antonio, o pai, e possui um tempo de tela considerável, aparecendo em diversas fases da vida de Ney, praticamente como um antagonista. 

A voz de Ney Matogrosso é um elemento bastante destacada pelo filme, desde a sua experiência pela cena teatral como em coros onde o timbre do cantor não passou desapercebido. O filme de Esmir Filho conta ainda com uma eficiente direção de arte e fotografia, que dão corpo às interpretações bem fundamentadas do elenco. O diretor abusa dos closes em Jesuíta Barbosa e aproveita a expressividade do ator e sua leveza em cena para deixar a câmera a sua disposição, assim como registra com desenvoltura os trejeitos bailarinos que o ator realiza com grande talento nas cenas de shows do artista. Esmir Filho faz do corpo de Ney um personagem à parte por reconhecer nele um elemento fundamental da personalidade da pessoa Ney Pereira, o sublinhando como um corpo socialmente transgressor. 

Há inclusive uma atenção às habilidades manuais que o cantor tinha na fabricação de suas próprias roupas e apetrechos usados nos shows, além do cuidado pela maquiagem pesada que usava no rosto. A aparência de Ney como artista, que muitos enquadravam como andrógina, não é negligenciada pela direção que busca compreender de maneira mais complexa essa construção imagética e corporal do artista como uma ode à liberdade, não como uma institucionalização de uma conduta. O ser livre não está para ser enquadrado e isso está posto em cada imagem do filme.     

Homem Com H não pretende reconstituir toda a carreira ou a vida de Ney Matogrosso, pois seria realmente uma empreitada das mais frustrantes, mas enfatiza bastante as relações amorosas do cantor, em especial com Cazuza (Jullio Reis), que é um coadjuvante de peso no roteiro de Esmir Filho. É preciso dizer, que a interpretação de Jullio Reis como Cazuza não é das mais empolgantes, tem seus bons momentos, mas não convence em todas as cenas que aparece. O Cazuza do final da vida é mais convincente do que o rebelde da juventude, pois falta aquela intensidade e irreverência tão características do compositor boêmio carioca na interpretação do ator.  

A abordagem em torno da sexualidade de Ney Matogrosso ocupa boa parte da história, o que é até surpreendente, já que o cantor sempre foi bastante discreto quanto a sua vida íntima. Apesar do comportamento sexualmente sempre desafiador, Ney Matogrosso nunca foi um personagem engajado nas reinvindicação dos direitos LGBTQIAPN+, vive e defende o seu direito à liberdade de relação com quem quer que seja e isso está no filme ao viver amores tanto com homens quanto com mulheres, muito embora os homens serem os parceiros mais frequentes.

Mas com certeza, Homem Com H vai emocionar as plateias pela força que Jesuíta Barbosa imprime no personagem, amparado por uma mise-en-scéne bem construída por Esmir Filho, que para a felicidade dos espectadores e fãs insere números musicais inteiros e dinâmicos na trama e faz do filme também um grande espetáculo, tal como são a carreira e os shows de Ney Matogrosso. Por isso, nada mais louvável e emocionante do que ver Ney aparecendo de corpo presente, sem maquiagem, interagindo em meio à natureza que tanto enalteceu e respeitou na carreira. Esse é um filme daqueles que a gente sai feliz e cantando. E isso já é muito.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...