Texto por Marco Fialho
Raoul Peck vem se destacando por resgatar personagens significativos da história afro-americana, como o fez de maneira bastante incisiva em Eu Não Sou Seu Negro (2016), filme que partia das reflexões de James Baldwin sobre o ativismo antirracista dos grandes líderes como Martin Luther King, Malcolm X e Medgar Evers. Agora em Ernest Cole: Achados e Perdidos, o diretor centra a sua narrativa em torno do fotógrafo sul-africano Ernest Cole que se exilou na Inglaterra, Suécia, e sobretudo nos Estados Unidos, para fugir do regime violento do Apartheid na África do Sul, que assassinou, perseguiu e massacrou os negros do país.
Raoul Peck divide a sua própria narração com Ernest Cole, interpretado empaticamente por meio de uma voz em off pelo ator LaKeith Stanfield (Corra! e Judas e o Messias Negro). Essa narração não só é explicitada como ganha uma matiz mais acentuada lá pelo final do filme, quando já morto, Cole fala de sua morte e de como gostaria de ser visto e interpretado. O roteiro de Peck foi escrito a partir das falas e escritos do próprio fotógrafo, além de depoimentos de amigos e familiares. Ernest Cole: Achados e Perdidos é sem dúvida um documento crucial para a história contemporânea da resistência negra e o trabalho de Peck na coleta de materiais, especialmente das fotos de Cole e de outros colegas de profissão que tiraram clicks do fotógrafo, constituem a base dessa bela pesquisa.
Mas o que dizer do trabalho primoroso das trilhas sonoras inseridas para ajudar tanto na contextualização do filme quanto na construção de um sentimento melancólico presente em quase todas as cenas desse documentário. A inclusão do cool jazz é perfeita para expressar as lutas e andanças que Ernest Cole fez pelo mundo no combate incansável do Apartheid sul-africano. Pelo uso das trilhas, ora sul-africanas ora do jazz dos Estados Unidos, Raoul Peck encontra o ritmo certo para a sua narrativa, numa explosão de melancolia e beleza, sem cair em uma plasticidade forçada, mas sim em uma narrativa precisa e orgânica de um preto e branco emulado das próprias obras fotográficas de Ernest Cole.
Ernest Cole: Achados e Perdidos é aquele tipo de documentário que sabe buscar um personagem que teve proeminência em uma determinada época e que depois caiu no esquecimento, para arremessa-lo novamente no lugar que lhe é de direito na história. Ao jogar luz no personagem, somos convidados a conhecer e reconhecer o seu papel no mundo político e artístico de seu tempo, pois Ernest Cole nos proporciona pelo seu trabalho uma visão única de uma época, além de mergulharmos na própria personalidade introspectiva do artista, sua melancolia por não poder viver em seu país de origem.
Assim, a ideia de suicídio e de morte pairam sobre Ernest Cole: Achados e Perdidos. Além de viver em um país intolerante e inviável para os negros, o exílio em Nova York e a posterior viagem aos Estados do Sul, igualmente racistas e violentos com os negros, deixou Ernest Cole ainda mais melancólico ao ver que a questão negra era maior do que a de seu território. As fotos que fez nos Estados Unidos são realmente surpreendentes. Se na África do Sul sua câmera era uma extensão de sua luta diária, nos Estados Unidos a sua visão era de um estrangeiro tentando captar uma realidade de fora.
Em uma das sequências mais surpreendentes de Ernest Cole: Achados e Perdidos, Raoul Peck tenta entender como o material de Ernest Cole está em poder de um banco sueco. Nem a família sabe o porquê desse rico material iconográfico de um artista ativista está guardado numa instituição financeira europeia e como ela foi parar lá. No processo de produção do filme, a família ainda luta para ter em mãos esse precioso acervo, e o filme registra tudo isso com bastante clareza.
Uma das coisas que mais me chamou a atenção em Ernest Cole: Achados e Perdidos é a sua preocupação histórica, de contínua contextualização que a direção se empenha em demarcar. A situação política da África do Sul no decorrer dos anos está ali bem evidente, assim como a luta dos negros dos Estados Unidos pelos direitos civis. As lutas por liberdade estão presentes, assim como a visão apurada e atenta de Ernest Cole por cada momento vivido seja na África do Sul ou nos Estados Unidos.
A melancolia da história impregna a visão cada vez mais soturna de Ernest Cole acerca do mundo. O filme trabalha o período de luta e depois o de negação da Era Reagan, bem como as tenebrosas consequências de seu governo financista e pouco atento aos mais pobres. O registro fotográfico de Cole do abandono dos Estados Unidos pelos mais necessitados está no documentário quando o fotógrafo está no final de sua vida e flagra com perplexidade sua câmera o abandono das pessoas que vivem como indigentes nas ruas, como se apenas existissem, perdidos e sem sequer buscar um sentido para as suas existências. Esses são os achados que Raoul Peck nos oferece nesse precioso filme que vai além do simples registro ao tratar com amor e comprometimento o seu personagem.
Uma das produtoras associadas de Ernest Cole: Achados e Perdidos é a gigante Netflix, o que nos encheu de esperança. Se na sessão que fui tinham apenas quatro pessoas (contando comigo e minha esposa), a possibilidade de inserção do filme na plataforma mais vista no mundo não só dá um alívio como nos enche de esperança de que esse trabalho impecável, triste, necessário e bonito chegue a uma plateia mais ampla. Que assim seja.
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