Texto por Marco Fialho e Carmela Fialho
Marcelo Gomes começa Criaturas da Mente com uma citação do mestre Orson Welles, em que o caráter ilimitado do cinema é evocado, assim como a ideia de sonho. A viagem do cineasta inicia sob esses auspícios poderosos e convida Sidarta Ribeiro, depois de ler Ciência em Cracatua, a embarcar com seus estudos e conhecimentos como o fio condutor nessa aventura em busca do desconhecido.
A motivação de Marcelo Gomes para o filme parte do fato dele dizer que parou de sonhar. Mas lógico que a ideia de sonho está diretamente relacionada a de cinema e a época da pandemia do Coronavírus seria perfeita, já que a vida estava restrita ao isolamento e o ato de sonhar se tornou uma forma de escape diante de uma realidade cotidiana insuportável que gerava uma sensação de aprisionamento.
Mas Criaturas da Mente vai além de seu tema ao nos interrogar sobre como o cinema pode abordar um tema tão ligado ao inconsciente humano. Por isso é fundamental refletir como o documentário de Marcelo Gomes se organiza enquanto estrutura narrativa. Basicamente, o filme se edifica por meio das conversas pelas quais o diretor estabelece em seu percurso pelo autoconhecimento. Esses encontros fazem de Marcelo Gomes também um personagem do filme, um tipo de dispositivo interessante, onde as motivações da realização partem de inquietações do próprio diretor, que assume esse pressuposto metodológico. Mas não são conversas aleatórias, Marcelo busca a companhia Sidarta Ribeiro para depois expandir essas conversas, puxando delas novos fios para agregar novas redes a partir dessa primeira conversa.
Nessa proposta expansiva, a conversa com Sidarta Ribeiro pensa as experiências do sonho e as interage com as práticas e reflexões vindas dos cultos e saberes de matriz africana e indígena. Segundo relato da Mãe Beth de Oxum os sonhos e incorporações representam portais para estabelecer contato com os ancestrais e orixás. Já a entrevista com Krenak revela a importância cosmológica do sonho na construção do imaginário humano na sua íntima relação com o universo e o planeta.
O próprio diretor se entrega a experiência do ritual da Ayahuasca durante horas e ao retornar relata a compreensão de que todos os seres vivos são importantes para a vida na Terra, sem nenhum tipo de hierarquia. Inclusive sua motivação inicial para fazer o documentário foi o fato de que não estava sonhando. Quando se sonha se vive, portanto, essa experiência se torna algo vital porque o corpo inteiro vive esse sonho, não só a mente. O sonho torna-se um acesso a outros seres, pessoas e tempos, o que altera a visão corriqueira de que sonho é algo restrito ao momento de dormir.
Segundo Sidarta, o sonho já ocupou em várias épocas históricas função de destaque para prever o futuro e estabelecer contato com parentes falecidos. O enfraquecimento da perspectiva do sonho como componente fundamental da vida foi perdendo força com o avanço das ideias racionais e do capitalismo.
Alguns médicos e estudiosos destacam que atualmente muitos pacientes relatam sonhos que refletem angústia, insegurança e situações de perigo. Ainda outros pacientes dizem que não sonham como é o caso de Marcelo Gomes. Entender a ativação cerebral é um fato primordial no estudo do sonho. Por isso é fundamental compreender o cérebro como órgão complexo, e que também pode ser domado por concepções de vida que o limitam e o cerceiam.
Ainda nessa busca de expansão, o filme explora a relação dos sonhos com a psicodelia na arte e Marcelo Gomes aproveita para convidar o animador Diego Akel para misturar técnicas de animação às entrevistas e assim retratar as imagens oníricas advindas da experiência com agentes alucinógenos. A psicodelia ajuda a entender que a matéria do sonho é possível até quando estamos acordados.
É bastante interessante ver como Marcelo Gomes não restringe suas reflexões sobre o sonho do ponto de vista somente científico do homem ocidental, mas o quanto ele não abre mão de expandir as possibilidades sem estabelecer hierarquias de conhecimento e estudo. Assim, é tão crucial se debruçar mecanismo de sonho de um polvo quanto de nós humanos enquanto seres plurais e multiculturais, já que essa vivência não é exclusividade do homem branco ocidental. Marcelo se utiliza de alguns de seus filmes para trazer discussões sobre o papel do inconsciente coletivo em nossos sonhos individuais, em mais uma experiência imersiva plural.
A riqueza de Criaturas da Mente é tão ilimitada como o estudo sobre o cérebro. Essa ideia de que no cérebro possuímos diversas vivências que estão postas em um tempo mais alargado como criaturas que trazemos e que podem ser acionadas a qualquer momento é fascinante. Ligar redes cerebrais é um desafio que a humanidade precisa experimentar e a criação artística não deixa de ser uma bela amostra de quantas conexões se é possível estabelecer na vida. A conexão com o vínculo ancestral é apontado tanto por Sidarta quanto por Marcelo como um caminho rico para levar a atividade cerebral longe, tendo o exercício do Carnaval, como um dispositivo coletivo precioso para ressignificação do sonho humano.
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