Texto por Marco Fialho
Para quem gosta de clichês, Confinado é mais do que um prato cheio, é um prato transbordante. E são tantos que se pode escolher quais o agradam mais, desde os sociais até os cinematográficos. E o diretor David Yarovesky ainda faz questão de mistura-los com fortes elementos de psicopatia, acrescendo a tudo isso um Anthony Hopkins incorporando um tipo que muito se assemelha ao seu famoso psicopata Hannibal Lecter, só que agora ele vive William, um milionário ávido em fazer vingança com as próprias mãos, ou seria mais adequado dizer com o próprio carro?
Mas Anthony Hopkins aqui é um coadjuvante de luxo, inclusive é o que mais mantém a nossa atenção e interesse no filme, até quando só atua com sua voz off inconfundível. O protagonista mesmo dessa trama é Eddie (Billy Skarsgård), um jovem que se tem sérios problemas financeiros e anda devendo atenção e mais responsabilidade perante a educação da filha. Se refletirmos a obra em seu arco mais amplo, veremos que Yarovesky constrói a trama pelo olhar de Eddie, pelas suas angústias e isso faz todo o sentido devido o fundo educacional que o final do filme promove, e que discutiremos mais à frente.
Confinado é inspirado em um caso realmente ocorrido na Argentina, mas me remeteu a um outro thriller de ação, no caso, o brasileiro Propriedade, dirigido por Daniel Bandeira, só que as abordagens adotadas por ambos são bem divergentes. Enquanto o brasileiro investe em escancarar a antiga luta de classes existente em nosso país, onde o espaço do carro era uma continuidade dessa desigualdade social injusta, em Confinado, a ideia de propriedade desse carro ratifica o abismo ao fazer de um miserável alguém que mereça receber uma austera punição por se atrever a invadir o bem alheio. Entretanto, a direção de David Yarovesky jamais interroga como William conseguiu sua fortuna. Tudo indica que ele é um médico, sim, profissão que deveria prezar pela vida do outro, embora não fique claro que tipo de profissional ele é, se ganhou dinheiro com uma medicina adepta do sistema privado de saúde, daqueles que só atende quem paga alto por isso. Bem, isso o roteiro não está minimamente preocupado, pois o que sabemos de William é que ele é um homem rico preocupado sobretudo em torturar de maneira psicopata um outro homem, tendo um fato traumático do passado como motivador de suas ações.
Talvez por Confinado se passar prioritariamente em um espaço de um carro, o roteiro textual passa a ter muito relevo, sendo os diálogos e reações elementos fundamentais para a construção da mise-en-scène do filme. A câmera fica solta pelo carro, oscilando os ângulos ao máximo para dar um dinamismo à trama que se passa em um espaço mínimo de um carro de luxo. Volta e meia temos a perspectiva das diversas câmeras que William colocou no carro. Mas há também bastante cenas onde vemos o carro de fora, inclusive o filme parece encomendado como um merchandising desse novo veículo, vendido como um máximo de segurança para o seu proprietário (quem procurar na internet pelo nome do carro vai entender) e nesse sentido, o thriller de Confinado se justifica inteiramente, afinal, o carro é constantemente fetichizado pela câmera como a maior estrela da história.
Confinado não deixa de ser um filme muito questionável do ponto de vista de seu discurso. Ele provavelmente vai servir como uma luva para quem tanto prega a falência do Estado e sua inoperância em relação à segurança pública, apostando em ações individuais ou corporativas (leia-se também miliciana) como exemplo e solução educacional para infratores em geral da lei, que o Estado habitualmente não consegue gerir. Confinado vai além da ideia do justiceiro ao abraçar a ação vingativa de um homem que perdeu a filha em um assalto. Se em algum momento a linha entre justiça com as próprias mãos e vingança torna-se tênue, a linha entre o discurso político e social se afasta, e ficamos com a impressão de que as práticas que o filme apresenta são as de um homem rico que a tudo pode, inclusive torturar de maneira psicótica um ladrão como se fosse polícia e juiz a um só tempo. O que está em jogo não é mais a ideia de justiça, mas sim a de vingança, o que torna o discurso bastante rasteiro, dicotômico e ideológico comprometido.
Paira no ar a pergunta: para quem esse filme serve ou para qual grupo político esse discurso pode servir? Em Confinado, quem tem a grana tem o poder de criar as próprias regras em uma sociedade onde uma minoria domina financeiramente a maioria e que as leis estabelecidas não dão mais conta de garantir a segurança de todos, nem mesmo a dos ricos. Mas contraditoriamente, quem tem grana pode mais nessa sociedade injusta (afinal quem são os injustiçados por esse mundo arrivista?) O que sabemos é o quanto recentemente a grana fez de destrutivo para o Planeta, com seu ataque às reservas ambientais e aos grupos culturais tradicionais, mas tudo isso é ignorado em Confinado, afinal ao rico cabe ainda forjar um tipo de pretensa justiça e de prisão (sim, esse carro é um presídio), onde cabe tanto a prática da tortura quanto a decisão sobre a vida do outro. Quer dizer ainda que quando temos uma perda significativa e dolorida, como a de William, ganhamos o direito e o salvo-conduto de fazer o que quiser com o outro, como compensação e alento psicológico, e ficarmos indiferentes aos tribunais de justiça?
E o que dizer da junção de perfídia e ironia presente em toda a jornada do herói na epopeia de Eddie? E pasmem, nela está embutida um pretenso processo educativo para o personagem, afinal, quando Eddie está precisando de grana para pagar o conserto da van, que usa como meio de trabalho, decide partir então para expedientes ilícitos como praticar pequenos furtos, o que o leva no desespero a invadir o carro luxuoso de William em busca de algo financeiramente maior para resolver suas pendências e acaba passando por provações e por uma série de torturas físicas (que inclui até eletrochoques e a ter que beber a própria urina) e psicológicas. Confinado pode-se definir como a típica luta entre um dito cidadão de bem (e nós sabemos bem no Brasil do que eles são capazes!) e um pé-rapado que comete pequenos delitos para alimentar a filha. Claro que o roteiro de Confinado vende a imagem de Eddie como a de um irresponsável que prioriza golpes a cuidar da filha, para nos induzir o quão justas são as torturas impostas por William ao personagem de caráter duvidoso e tendenciosamente desviante.
O filme traz uma crença (no mínimo, duvidosa, para não dizer perigosa) de que o processo educativo passa pela violência e tortura, já que os caminhos legais adotados pela burocracia Estatal não resolvem os problemas coletivos, nem em um curto ou médio prazos. É uma visão individualista e arrivista de sociedade e que não contempla um viés mais crítico às desigualdades sociais, acreditando que apenas um mundo policialesco ditado pelos ricos trará "justiça", enquanto sabemos que no máximo sustentará um prazer sádico para quem possa assim pagar, como o faz William, além de vender a ideia de que só resta a conformidade da mediocridade pelos despossuídos. Por isso, o carro encomendado por William se torna um tipo de cadeia de periculosidade máxima, ao dar ao suposto criminoso a merecida lição. Essa é a ideia de educação que Confinado forja para os espectadores.
Assim, Hollywood nos brinda com um espetáculo eletrizante, mas de fundo triste, em que vemos o espectador se sentindo vingado dos infortúnios da vida pelo viés de um milionário, como uma espécie de transferência vingativa perante um mundo que nos arremessa cotidianamente na apatia e impotência. Um cinema, sem dúvida, catártico, que busca na exploração da aventura e do suspense atingir emoções imediatistas em sua relação com o espectador, sem jamais propor uma reflexão crítica do contexto, apenas uma celebração da violência de um psicopata como um descarrego sensorial de uma sociedade doente e vazia espiritualmente. O que vemos é uma ética que induz o conformismo como meio de vida, aliada à uma ideologia arrivista e capitalista. Confinado não deixa de ser uma aula de como o cinema pode endossar, pelo uso dos sentidos, um medo social latente, que alimenta uma ideia de controle das almas tal como o sistema de vigilância que vivemos hoje.
Mas queria como provocação, deixar uma pergunta no ar, quase que despretensiosamente: Confinado serve como diversão? A resposta a essa indagação pode até ser sim, embora uma outra possa se interpor como um precioso contraponto a essa primeira: mas quem nos ensinou que cinema é só diversão?
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