Texto por Marco Fialho
O cinema pode graficamente expressar metáforas sobre o mundo em que vivemos, ainda mais quando este mundo é tomado historicamente pela injustiça ou por uma violência contumaz. Animale, dirigido por Emma Benestan, é um excelente exemplo de uma obra que se utiliza de uma imagem para denunciar práticas de estupro que teimam em se proliferar pelo mundo afora. Curiosamente, o lançamento de Animale acontece na mesma data de Manas, o filme brasileiro que também narra uma história de estupro feminino.
E como Animale é certeiro em narrar a história de Nejma (Oulaya Amamra), uma jovem que sonha em ser toureira em uma profissão dominada pelos homens. Desde as primeiras cenas, nota-se o preconceito por meio de brincadeiras machistas contra Nejma. A montagem é muito habilidosa ao esconder algumas informações e revelá-las no momento propício em que valorize as surpresas da trama.
A direção de Emma Benestan demonstra inteligência ao saber inserir o body horror na narrativa. Somos até surpreendidos com essa faceta da história, trabalhada no ponto certo, sem que se banalize o recurso ou se retire dele sua força. Primeiro, a diretora começa a mostrar alguns estranhos assassinatos, mas somente na reta final temos ficamos sabendo quem os comete. Sem que percebamos, a direção vai muito lentamente nos arremessando no cinema fantástico e o faz de maneira exemplar, mantendo o máximo de realismo, o que faz o elemento fantástico saltar da tela quando ele chega.
A fotografia é um dos pontos altos de Animale, com cenas noturnas muito bem executadas, que mantém o clima de terror e o mistério da história. Achei incrível os planos em que Nejma está deitada numa carroça e vê o mundo de ponta à cabeça, um simbolismo extraordinário. A câmera também passeia em cenas de refeições em mesas, onde vários assuntos são explorados, além dos olhares a sugestionar assuntos subliminares ou secretos.
Um destaque é a maneira como a animalidade se entranha no filme. Estranho como uma das características desejadas para quem trabalha com touros é a animalidade, isto é, o humano deve-se buscar parecer com o objeto de seu trabalho para se ter o efetivo sucesso. Isso permite uma naturalização da rusticidade cotidiana, o que gera uma tensão permanente nas cenas. Mas o auge dessa animalidade ocorre quando matam o touro Trovão, modelo de animal forte, e Emma Benestan filma Nejma refletida no olho dele morto, como se marcasse ali uma espécie de transferência de almas.
Em algum momento do filme, nos perguntamos quem é caça e caçador, e lembramos que o humano também é um animal. Em outra cena com alto teor simbólico, um touro está sendo marcado a ferro e fogo, e Nejma sente a dor no animal e se vê em seu lugar, lembrando o dia em que foi estuprada. É uma cena muito forte e de grande força emocional.
A imagem do patriarcalismo surge com grande impacto, pois uma fazenda de touros não é só composta por homens que ali trabalham, mas também de um patrão, que se comporta como um pai e exige empenho total de quem trabalha para ele. A relação de Nejma com o patrão se desenha dessa forma, e vale lembrar que o pai dela foi um empregado da mesma fazenda.
Animale é um filme vigoroso, um drama com um tempero na medida de body horror, que nos faz pensar sobre o universo feminino e na opressão masculina, cujo espaço de uma pequena localidade no interior da França pode representar uma visão mais ampla de um tema dos nossos dias e do cinema desse tempo anacrônico que vivemos, uma fábula violenta sobre como o universo masculino trata historicamente as mulheres.
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