Pular para o conteúdo principal

VIVA MARÍLIA (2025) Dir. Zelito Viana


Texto por Marco Fialho

Uma delícia! Essa é uma primeira impressão que temos ao deixar a sala de exibição após assistirmos ao radioso documentário Viva Marília, dirigido por Zelito Viana, com a codireção de Esperança Motta e roteiro de Nelson Motta. É, sem dúvida, uma homenagem à altura do talento de Marília Pêra, uma das grandes artistas de nosso país. Um filme que conta com a participação do filho e das filhas, mas cujo maior atrativo é repassar a vida dela por meio de sua voz, trabalhos e depoimentos. 

É muito difícil retratar uma personagem que possui uma trajetória longa e de imensa expressão artística, reconhecida pelo destacado talento. Essa multiplicidade de possibilidades é o maior adversário do documentarista. Entretanto, Zelito Viana acerta em cheio ao construir um filme ao mesmo tempo solto, sem amarras cronológicas, o que engessaria a proposta, e preciso ao deixar a própria personagem narrar fatos de sua vida. 

A montagem de Jordana Berg é de uma sensibilidade e agilidade impressionantes. A costura entre as cenas são fascinantes, o filme passa por nós como um rio tranquilo, daqueles que sentamos em uma pedra em sua margem para admira-lo passar com a força justa das águas, com águas nem excessivamente caudalosa, nem beirando a secura. O tempo é exato, no ponto certo, daqueles que nos deixam querendo mais, não porque falta algo, mas porque queremos mais desse prazer. Não são as datas que determinam a ordem que elas aparecem e sim as temáticas que vão se puxando e amarrando, e isso sem que sequer percebamos esse fato. Merece destaque ainda Remier Lion pelo trabalho minucioso de pesquisa de imagens de arquivo, inclusive o filme é composto apenas delas.

Viva Marília faz dela Marília algo tão presente, tátil mesmo. Apesar das datas dos trabalhos estarem lá o tempo todo, o tempo parece suspenso. Marília está tão sólida em cada depoimento e trabalho visto, um tipo de talento raro que comove, que nos faz admirar cada fala encantadora e repleta de amor pelo teatro, pela música, pelo palco, pelo cinema e pela música. O filme nos envolve desde à infância de Marília Pêra, onde o palco já possui desde meses de vida um significado. A origem artística da família, do pai e mãe ator e atriz, da avó também atriz, uma linhagem verdadeira, de quem comeu a poeira do palco desde sempre. 

Outro grande mérito de Zelito e Esperança é o de inserir, sem forçar a menor barra, Marília Pêra na própria história da cultura brasileira, mostrar como ela esteve em momentos cruciais no teatro como Roda Viva (1968), de Zé Celso Martinez Corrêa e nas novelas que popularizaram sua imagem como Beto Rockefeler (1968), O Cafona (1971), Bandeira 2 (1972). E o que dizer do cinema, a inesquecível e arrebatadora personagem de Pixote (1981) e Central do Brasil (1998). Ainda tem os musicais, que a princípio tinha uma influência e admiração pelo trabalho da mãe, mas depois explodiu numa potência extraordinária, como em Estrela Dalva (1987), Elas Por Ela (1989). 

Marília Pêra foi uma artista que chamamos de completa, por abarcar todos os talentos desde a dança, até o canto, passando pela interpretação, área que dominou de maneira intuitiva, sem passar por escolas de teatro, embora tenha estudado balé, canto e piano. O seu talento inquestionável lhe rendeu um raro elogio vindo da polêmica e ranzinza crítica de cinema estadunidense Pauline Kael, que implicava até com o genial Orson Welles. Viva Marília é aquele documentário para se deixar levar, realizado com leveza e profundidade, e ideal para reafirmar mais uma vez o talento brasileiro para a arte, 

Contudo, um documentário é feito de muitas lembranças e alguns esquecimentos. No caso de Viva Marília, a direção passou ao largo do polêmico apoio público que a atriz deu a Collor de Mello, nas eleições de 1989. Afinal, qualquer ser humano é feito de acertos, mas também de erros. É compreensível e natural que filmes tributários corram o risco de sublinharem apenas os pontos positivos de seus personagens.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...