Pular para o conteúdo principal

SOBRE BORBOLETAS E OUTRAS HISTÓRIAS (2025) Dir. Sávio Tarso


Texto por Marco Fialho

O bom cinema não tem a ver só com o orçamento que o diretor possui para realizar seu filme, mas sim com o conceito de cinema que está incrustrado nele. É o caso de Sávio Tarso, diretor que atua em Ipatinga, conhecida como uma das cidades do Vale do Aço de Minas Gerais. Logo no primeiro frame de Borboletas e Outras Histórias vemos escrito em um quadro escolar "Atividade: O Mundo Animal" numa sala de aula vazia, enquanto passa os créditos e ouvimos uma música que nos remete às tradições afro-brasileiras. Isso parece pouco, mas não o é.  

Quem filma com poucos recursos não pode se dar ao luxo de desperdiçar um só minuto, precisa pensar nos mínimos detalhes. Teria duplo sentido essas palavras no quadro que citei acima? O racismo, tema preferencial do diretor e desse filme, já está indagado logo de cara. Seria oportuno lembrar que o segundo frame do filme se parece com o primeiro, só que agora no quadro está escrito: "20 de novembro, dia da consciência negra", com uma criança negra de perfil no primeiro plano da imagem. Essa é uma imagem evocativa. Porém, estranhamente, a imagem que vem logo a seguir a essa volta para a anterior, a tal que se referia ao mundo animal. Creio que esse choque de imagens, junto com a música, formam uma ideia dialética que de certo Freud não explicaria, mas Eisenstein sim. As imagens conforme estão montadas por Sávio Tarso ampliam os significados e revelam possíveis contradições, assim como nos sugere novas visões sobre elas.  

Mas essa ideia do duplo eisensteiniano e dialético se reafirma ainda na sequência seguinte, onde vemos uma reportagem real sobre um assalto numa escola, e concomitante a ela, uma outra ficcional, que a reencena. A descrição fria da mídia, fortemente candidata a ser a imagem oficial do fato histórico narrado, contrasta com a imagem viva da ficção, que reconstitui pelo olhar do diretor Sávio a mesma cena do suposto roubo na escola, como se ele afirmasse que vai recontar a história sob o seu viés e não só pela da mídia. É o cinema sendo reinventado para contar novamente as histórias, que antes, ratificavam os apagamentos realizados cotidianamente pela sociedade. De maneira incisiva, o cinema de Sávio sempre trabalha com a lógica do olhar, com uma firme posição de que precisamos retornar nosso olhar para pensar novas perspectivas para um mundo desigual e injusto. Por isso, vemos muitas imagens e o confronto entre elas, para que se fustigue uma reflexão sobre velhas ideias sempre reiteradas pela sociedade conservadora. Por isso, afirmo que o cinema de Sávio antes de ser realista, é dialético.  

A luta contra o racismo impregna cada frame de Sobre Borboletas e Outras Histórias, e por trás de cada cena tem uma indignação verdadeira de quem sabe qual sofrimento está sendo ali exposto. Há uma necessidade de rever a ideia de mundo animal, e uma convicção de que pelo cinema se deve abrir espaço para que a cor preta possa ser atribuída a qualquer animal e possa figurar na fantasia de uma criança negra. O simbólico da liberdade está continuamente presente na imagem da borboleta, esses seres leves que amam voar. Sávio Tarso sempre deixa aberta a possibilidade de transformação tanto do mundo presente quanto da visão histórica que formou, e ainda forma, as narrativas contadas pela sociedade. A professora opressora, que solicita a escolha da aluna por outro animal, é confrontada pela tatuagem da menina, que insiste e investe na sua liberdade. Cada imagem e som de Sávio Tarso representam um tiro e funcionam como um golpe mortal ao racismo.                         

Já comentei antes a existência de muitos planos da sala de aula em Sobre Borboletas e Outras Histórias, mas Sávio introduz ainda outra sala, a de julgamento. Interessante observar o quanto a sequência do julgamento se assemelha a imagem do primeiro frame do filme, só que agora, o que vemos é um salão da justiça, com suas cadeiras vazias prontas para realizar com sua frieza o julgamento da menina que anseia desde criança pela liberdade, mas não qualquer liberdade, mas uma em que a efetive como uma mulher negra livre. Curioso como a escola e o judiciário são vistos como espaços historicamente de poder, onde se reafirma ou se nega a ideologia dominante, também lugares de traumas e opressão. 

Por isso, é sempre bom lembrar os nomes de grandes pensadoras mulheres, que lutaram e lutam ainda por uma sociedade sem racismo. E mais, para contrapor ao discurso racista do promotor, Sávio Tarso seleciona imagens de vários casos que aparecem na TV, que reafirmam o absurdo da existência e manutenção do racismo. Agora, a mídia é utilizada como espaço de denúncia, os anunciantes, ou seja, as elites, não podem mais proliferar o ódio racista em pleno século XXI, afinal, o mercado não pode fazer distinção de cor e consumidor bom é aquele que consome e enriquece os empresários.  

Sobre Borboletas e Outras Histórias repisa, inclusive no título, a reincidência das práticas racistas no Brasil. São muitas histórias, algumas já conhecidas e outras tantas ocultadas no cotidiano das cidades. Contudo, sabemos que as humilhações deixam marcas profundas em quem passa pelo racismo. O racismo é uma doença, dentre tantas outras, de uma sociedade que cultivou e naturalizou a desigualdade e o processo de escravização lá na formação do país, e que precisa continuar o estimulando para perpetuar privilégios de grupos econômicos opressores.

Mas como é lindo poder ver a juíza negra, em uma atitude de sororidade e de extrema justiça retornar àquela sala de aula do início do filme, e ouvi-la retrucar a tal professora que queria induzir a menina a mudar de animal. "Sim, existem borboletas negras" e as imagens de várias mulheres negras apenas reafirmam essa sentença. Para mim, o mundo animal nunca mais será o mesmo, graças à intervenção precisa e preciosa do cineasta Sávio Tarso.

Comentários

  1. Obrigado pela brilhante elucidação!
    Sobre Borboletas e outras histórias é uma pequena fração no dever de denunciar a discriminação descabida e perpetuada desde sempre. Nós da Video Plus somos honrados em ter contribuído nesta obra!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BABY (2024) Dir. Marcelo Caetano

Texto por Marco Fialho Baby dramaturgicamente se escora em uma mistura de romance LGBT com um intenso drama social. Faz lembrar filmes como Pixote e o teatro de Plínio Marcos. O conceito estético que o diretor Marcelo Caetano propõe perambula lá pelo final dos anos 1970 e início dos 1980, em especial pela maneira como os personagens marginalizados são construídos. Por isso Baby não deixa de ser um exercício interessante de roteiro e direção.  O filme se guia por meio das ações dos personagens Baby (também chamado de Wellington), numa interpretação magnética do jovem ator João Pedro Mariano e sua relação com Ronaldo, interpretado por Ricardo Teodoro. O roteiro de Marcelo Caetano, coescrito por Gabriel Domingues, aposta numa narrativa onde os diálogos são curtos e precisos, nunca repetitivos à imagem, sempre a alimentando com sugestionamentos e olhares. A fotografia, a cargo do experiente Pedro Sotero e Joana Luz, sustenta imagens fortes vindas das interpretações muitas vezes duras e...