Texto por Marco Fialho
Rita Lee é um ícone brasileiro, com sua personalidade única, rebelde, debochada, escrachada e carismática. Todos querem ouvir não só as suas lindas músicas como também as suas falas divertidas e controversas. O documentário Ritas, realizado por Oswaldo Santana e codirigido por Karen Harley, é antes de tudo um filme de fã. O primeiro sintoma disso é o fato de os números musicais se sobreporem aos depoimentos. Por isso, Ritas é um filme para fãs.
Ritas não segue o formato clássico de documentários de artistas, onde se explora muito o por trás das câmeras. Não que o filme não tenha isso, até tem, mas não é o que guia o documentário. Assim, Ritas é um documento celebratório, ótimo de assistir, que parece acabar na metade, pois saímos com a sensação de que queríamos mais e mais. A empolgação de Rita Lee pela vida e arte são contagiantes e isso o filme proporciona, uma avalanche de momentos inesquecíveis e pulsantes.
Rita foi a verdadeira metamorfose ambulante de que cantou Raul Seixas, o nosso rei do rock, enquanto Rita Lee foi a rainha inconteste. Existiram incontáveis Ritas, impostas pela maneira como o mundo se organiza para um artista, em especial uma mulher, que precisa ser uma socialmente e outra no mundo privado, uma mãe a cuidar de seus filhos e uma ferrenha feminista na vida pública, tomando atitudes antes aceitas ou reservadas apenas ao mundo masculino. Essa Rita, a Lee, é apaixonante e impossível de ficar indiferente. O filme se preocupa em demarcar esses territórios, mesmo que tenhamos que admitir que Rita Lee Jones era foda em qualquer um desses ambientes, inclusive no mundo virtual, no qual aparece sublime junto à neta, em uma cena que mesmo sendo divertida expõe nuances da personalidade libertária de uma avó que abusa do comportamento não convencional.
Muito me chamou atenção a montagem, assinada pelo próprio diretor Oswaldo Santana, que estabelece um diálogo interessante e instigante entre uma Rita do presente, já idosa, com uma Rita mais nova e mais disponível para a exposição pública. O que vemos é essa Rita mais madura e espiritualizada, mesmo se reconhecendo ateia, em conversa com uma Rita Lee enérgica e incontrolável, capaz de lá no início da carreira de mandar os donos engravatados de uma gravadora para aquele lugar em alto e bom som. O que escapa em cenas como essas é o quanto Rita Lee era imparável e disposta a muito para não se calar. Mas há sutilezas, como a encantadora cena em que Rita apresenta seus bibelôs, seus bonecos de estimação, como o Bowie magricelo, o Darth Vader, entre tantos que apenas fazem com que a vejamos como um ser humano, daqueles capazes de admirar o outro, não esses astros que só veem a si mesmos no mundo.
Mas é curioso o quanto Oswaldo Santana dá ênfase à descrição que Rita faz da família na infância, onde o seu humor refinadíssimo é explícito, sobretudo ao falar da aparência do pai e de uma roupa da mãe. Mais curioso ainda é como Ritas passa pela passagem de Rita pelos Os Mutantes, o maior grupo de rock brasileiro, como se tivesse sido meteórico, o quanto em verdade, foram momentos determinantes para a música brasileira. Um aspecto interessante de Ritas é o quanto o filme foge das picuínhas comuns do mundo dos famosos e retrata tanto Rita quanto Rita Lee sem penetrar no disse me disse, embora no caso dos Os Mutantes, o principal é dito, que ela foi expulsa do grupo depois de alguns desgastes com os irmãos Baptista.
Esses momentos adversos mostram a disposição e coragem de Rita de recomeçar, se empenhar mais na composição das músicas e ancontrar um caminho que a levaria longe. Como ouvir Fruto Proibido, lançado em 1975 junto com grupo Tutti Frutti, e não ver um talento brotando naquele instante. Nesse disco, que marca sua estreia pelo selo Phillips e que abriu novas portas para o rock no Brasil, Rita Lee emplacou três sucessos: Agora Só Falta Você, Ovelha Negra e Esse Tal de Roque Enrow. Um dos méritos da montagem de Ritas (que me deterei mais daqui a pouco) é o de não seguir uma cronologia rígida, o que ao meu ver coaduna demais com o próprio espírito anárquico e não hierárquico da música e da carreira de Rita Lee. Eram os últimos tempos do rock ser visto no país como um fruto proibido, ainda mais para uma mulher ser roqueira como ela.
Da fase de Rita Lee que marcou o fim da parceria com Os Mutantes, Ritas prefere sublinhar os encontros que foram para a vida, como os com Caetano e Gilberto Gil (que chegou a fazer um show juntos, que gerou o disco Refestança). , que segundo ela a ensinaram a fazer música brasileira. Vale frisar que Ritas é um filme inteiramente calcado em vestígios de vídeos pessoais mesclados com videoclipes, programas de TV, entrevistas e outras aparições de Rita Lee pelo universo midiático. Por isso, Ritas é um filme de arquivo misturado com uma entrevista inédita, filmada por Karen Harley, a codiretora, que junto com Oswaldo Santana, mescla esse depoimento com um farto material de arquivo das gravações de Rita, alguns bem conhecidos dos fãs.
Ritas pinça alguns vídeos que são precisos e funcionam exemplarmente para delimitar fases da carreira da artista. Uns dos mais incríveis e eficazes são os que Rita comenta sobre as mudanças de cabelo que faz durante a vida. Primeiro, a saída do louro para o ruivo, que ela comenta que vai do sol ao fogo; e depois lá no fim, quando ela assume os cabelos brancos e faz uma analogia com a cor da lua. Rita tinha esse dom da poesia que a conectou a vida toda com o público e isso não é fácil de se fazer. Particularmente, não acredito em Ritas, mas sim numa Rita que aceitou as transformações tanto físicas quanto espirituais durante a vida e que usou da Rita mais conhecida, a Rita Lee, para falar sempre de peito aberto suas opiniões e posições sobre o mundo, se aproveitando do poder que o reconhecimento público lhe deu. Não fugir das polêmicas foi a sua marca, assim como realizar uma quando foi o caso.
Quando disse lá no começo que esse era um filme para os fãs, o disse com convicção porque o que mais levou o público a se encantar por ela foi a sua imensa capacidade de rir de si mesmo, de encarar situações de carreira e pessoais de maneira franca e verdadeira e o rir de si mesma entra como uma estratégia de conviver com fatos irreversíveis da vida. O documentário se assenta muito em cima dessas presenças e respostas dadas sem um aparente filtro, sem subterfúgios e na cara que desconsertavam os interlocutores.
Um dos pontos altos de Ritas são os números musicais, em especial os que agregam parcerias, como as de João Gilberto, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Elis Regina e Caetano Veloso. Esses arquivos são preciosos e trazem um lado carinhoso e irreverente da artista. Vale destacar o depoimento de Rita Lee sobre o comentário de João Gilberto que ela era uma cantora bossa-noveira (nas palavras dela). Mas os resgates de alguns videoclipes são valiosos, como On The Rocks, naquela estética kitsch e colorida dos anos 1980. O filme traz desenhos fantásticos e coloridos de Rita, entre eles um dos The Beatles gays, que despertam em nós uma gargalhada instantânea. Nesse painel que mostra várias Ritas, tem ainda participações hilárias em cinema, como em Durval Discos (2002), estreia de Anna Muylaert na direção de longas.
Ritas traz momentos que ajudam o público a compreender a personalidade irrequieta de Rita Lee, como no show onde apresenta a música Miss Brasil 2000 e a artista leva para o palco uma mulher nua, mas envolta em uma capa brilhosa e a moça a abre somente uma vez e quem viu, viu, e quem não viu, não verá mais. Esse expressava bem o repertório irônico de Rita Lee e a sua dose de imprevisibilidade que marcava sua personalidade artística. Outra participação inusitada é a presença dela como Nossa Senhora, o que levantou polêmicas e protestos de religiosos e da igreja católica. A resposta de Rita Lee vinha sempre pela música ou nos palcos. Uma delas foi a composição Todas as Mulheres do Mundo, um tributo eloquente às mulheres que com sua arte e talento abriram caminho para transformar o papel da mulher numa sociedade careta e conservadora.
Entretanto, se Ritas tem tantos méritos, esqueci de mencionar o maior deles: o quanto é divertido e agradável de assisti-lo, o quanto passa rápido e o quanto nos divertimos e saímos felizes em ver Rita Lee durante 83 minutos ininterruptos. Por fim, Rita até ri da morte, sabedora que o seu fim se avizinha e chega a proferir a frase: "Eu tenho inveja de quem morre". Ritas não se contenta em ser sobre a história de Rita ou Rita Lee, ele quer exaltar a personalidade dessa mulher corajosa e maravilhosa, que amou e foi amada por Roberto Carvalho (outro que aparece sempre radioso no documentário e retrato pelo olhar amoroso de Rita). Ritas é uma explosão de amor e músicas icônicas. Eu como fã fiquei feliz e como cinéfilo também. Afinal, todos nós somos meio Rita Lee.
Ola! Obrigado pela crítica. Conte comigo para prosear sobre filmes e Ritas
ResponderExcluir2 pequenas correções, o clip que vc citou é o “on the rocks” e a entrevista dela é exclusiva e até então inédita.
Dia 22/05 nos cinemas
❤️🔥
Muito obrigado pela leitura! Sim, um dia a gente conversa sobre cinema e as Ritas. Já fiz as correções mencionadas, todas já devidamente corrigidas. Um grande abraço!
Excluirquerido, sou eu de novo, esqueci de mencionar que a entrevista foi realizada pela Karen Harley.
ExcluirVc foi de uma precisão brilhante na sua interpretação do filme. Obrigado
Abs
Oswaldo Santana
Muito bom saber, acrescentei no texto essa informação. Muito obrigado pelo seu comentário.
ExcluirOs desenhos foram uma grande surpresa pra mim...
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