Texto por Marco Fialho
Noel Rosa - Um Espírito Circulante vem se somar a outros filmes que trataram do jovem gênio do bairro de Vila Isabel, conhecido por sua magreza, boêmia e enorme talento para compor músicas. Afinal, esse menino esqualido que morreu antes de completar 27 anos, revela em suas composições o próprio feitiço de que tanto cantou.
Mas qual seria o diferencial desse documentário dirigido por Joana Nin em relação aos outros filmes já realizados sobre o bamba da Vila? Logo nas primeiras imagens isso já é evidenciado, em um drone que passeia pelo conhecido Boulevard 28 de Setembro, avenida que corta todo o bairro e na qual a famosa Escola de Samba Vila Isabel realiza seus ensaios com a comunidade nas semanas que precedem o grande desfile do Carnaval. As imagens de hoje ensejam o diálogo que a diretora quer estabelecer entre Noel e o presente do bairro. Isso é o que mais fascina em Noel Rosa - Um Espírito Circulante, a busca por um Noel do presente, e não uma mera estátua congelada no passado.
O documentário se constrói por meio de conversas. Uma delas, entre Mart'nália, Claudio Jorge e Nilze Carvalho, personagens do samba de uma Vila Isabel de hoje. Eles cantam Noel, falam de Noel e de seu legado e também da vocação boêmia do bairro, que Mart'nália diz que já teve um botequim em cada esquina. O documentário flagra as fachadas das lojas, muitas inspiradas em músicas de Noel. O compositor, morto há quase 90 anos atrás, em 1937, ainda está vivo, e muito, na memória e vida cotidiana de Vila Isabel.
Outra conversa que conduz o documentário é entre o cantor Zé Renato, que já gravou um disco com músicas de Noel, e Moacyr Luz, responsável pelo maior sucesso do mundo do samba nos últimos anos: o samba do trabalhador, nas segundas-feiras no Clube Renascença, instalado ali nos limites entre os bairros do Andaraí e Vila Isabel. São ações como essas que permitem que o bairro permaneça uma referência de samba para a cidade e que fariam a alegria de Noel. Uma das cenas mais bonitas do filme é a de um drone, que parte do seio do bairro até chegar no lotado Renascença em dia de samba. O drone em Noel Rosa - Um Espírito Circulante é utilizado com muita criatividade, sem o esnobismo de sempre, para por o bairro no protagonismo da cena, para que um determinado lugar seja visto em seu contexto maior e por isso funciona muito bem.
Mesmo que o filme de Joana Nin não seja aquele fissurado em trazer imagens de arquivo, a todo instante a narrativa se permite adentrar no túnel do tempo do samba de Noel, não só pelas gravações que emergem (algumas originais da época), como resgata depoimentos em áudio gravados no MIS (Museu da Imagem e do Som) de diversos artistas que conviveram com Noel, como Nássara, Haroldo Barbosa, Pedro Caetano, Cartola e outros. Mas os filmes tem ainda imagens do Carnaval de 1965 e outras raríssimas, como a do Grupo Os Tangarás, que Noel Rosa, ainda menino, participou no início da carreira com Almirante, Braguinha, Alvinho e Henrique Brito, cantando Vamos Falar do Norte, gravada em 1929.
E por falar em gravação, sempre é bom ver imagens de Aracy de Almeida, considerada a maior interprete de Noel Rosa, com sua malandragem charmosa cantando algumas músicas do nosso grande protagonista. Mas as músicas de Noel citavam deliberadamente o bairro de Vila Isabel, em especial a fábrica de tecidos Confiança, que hoje, mesmo desativada, ainda mantém a proeminente chaminé, embora abrigue um supermercado. Mas o filme vai às imediações da fábrica e registra as casas operárias que ainda estão lá para nos fustigar a memória. Joana Nin conversa com moradoras antigas, que pegaram a época do bonde e da fábrica, como Dona Gesci Nunes. De repente, passado e presente se confundem, pois parece que estamos fazendo uma viagem no tempo, pois a arquitetura é bastante evocativa, assim como ver tantas vilas, esse tipo de arquitetura muito típica dos subúrbios cariocas.
A flagrante contemporaneidade de Noel Rosa - Um Espírito Circulante é sentida em várias cenas, como a que Euzi Borges, uma militante negra e feminista, junto com suas amigas de umbanda e outras conversas, chegam para numa mesa de um bar, bem em frente ao Morro dos Macacos e ao lado da entrada do túnel que leva o nome de Noel, discutirem sobre o significado histórico das músicas de Noel, o quanto ele em Feitiço da Vila renega a macumba e a negritude que ele mesmo tanto se influenciou. São as contradições que precisam ser repensadas à luz da contemporaneidade. E isso não significa um cancelamento, mas uma nova contextualização cultural de uma obra, que tem um valor estupendo, pela qualidade mesmo da música de Noel. Como o grupo de Euzi diz, enaltecer o Noel bagaceiro, ladrão das garrafas de leite e que pulava de bar em bar numa boemia infinda, um tipo de espírito circulante acolhido pelos pretos de Vila Isabel.
Noel Rosa - Um Espírito Circulante me fascinou pelo risco de falar de um poeta de peso tendo o presente como referência de diálogo. Se o mundo branco de hoje prefere ver Noel como um roqueiro de seu tempo, afundado na criação de suas músicas, nas drogas e na boemia inclemente, um tipo de rebelde como diz Edu Krieger em seu depoimento. Já os pretos, ou mais precisamente as pretas, preferem colocá-lo em perspectiva mais crítica, embora reconhecendo o valor e o que o compositor realizou pelo bairro com sua circulação nas periferias dele e dos bairros vizinhos, como as incursões que fazia pela Mangueira de Cartola. Essa tensão está no documentário e é ela que o faz internamente dinâmico, sem esquecer o quanto fica irrefreável a nossa paixão assim que ouvimos qualquer música desse artista que mesmo tendo morrido aos 26 anos, produziu umas das maiores pérolas de nosso cancioneiro popular. E a imagem final de Edgar Duvivier tocando clarinete livremente pela Boulevard 28 de Setembro, não deixa dúvidas sobre a força da música de Noel Rosa. Esse passeio musical acontece como se ele estivesse lendo as partituras da belíssima calçada de pedras portuguesas e vem ratificar que a magia de Noel está incrustada em cada esquina de Vila Isabel.
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