Texto por Marco Fialho
O mínimo que podemos começar a dizer o quanto é justo realizar um documentário sobre Erroll Garner, que embora seja muito conhecido e respeitado no mundo do jazz, fora dele, ainda é bastante desconhecido. Misty - A História de Erroll vem para mitigar essa insipiência de informação de um músico absolutamente fantástico e fora do comum.
A direção do cineasta franco-suíço Georges Gachot (reconhecido pelos documentários sobre música, inclusive a brasileira, ver Onde Está Você, João Gilberto, Samba e outros) vem colaborar para que nos aproximemos desse talento nato, que segundo o próprio artista, não precisou de professor para aprender a tocar piano na mais tenra idade. Um ouvido para lá de apurado, nascido inteiramente para a música. E o filme conta com uma bela pesquisa de imagem e da própria vida de Erroll Garner, para trazer não só a personalidade introvertida do músico, mas também o seu talento, com o resgate de muitas apresentações em várias épocas desde os anos 1940 até os 1970, década de sua morte. O diretor resgata o primeiro vídeo em que Erroll aparece, datado de 1947, tocando a música Pastel.
Um dos pontos de apoio do documentário de Georges Gachot é a pesquisa do maior biógrafo de Erroll Garner, Jim Doran, que é um dos entrevistados. O diretor também conta com a ajuda da viúva e filha (não foi assumida oficialmente pelo músico) e especialmente os músicos, com destaque para os que tocaram com ele.
Creio que os músicos sejam uma parte interessante do filme, por mais que eles falem sobre a personalidade e a vida pessoal do artista, eles focam mais no processo de trabalho de Erroll Garner e nos brindam com detalhes sensacionais, como a informação de que o músico não ensaiava nada nem se sabia qual música seria tocada ou o tom a ser adotado, o que deixava em seus colegas de banda numa dupla reação contraditória: a primeira, de pânico, sem saber se isso daria certo; e a segunda, uma sensação de excitação por poderem viver verdadeiramente a magia da música.
Os depoimentos de Jimmie Smith (baterista) e Ernest McCarty (contrabaixista) são os mais elucidativos e enigmáticos, por revelarem aspectos surpreendentes de Erroll Garner, como jamais falar durante uma apresentação por achar que o público apenas queria vê-lo tocando. Outra revelação chocante é que os solos dos shows eram sempre dele e não era permitido solo dos outros integrantes da banda. Ernest afirma que o prazer de tocar com ele era maior do que qualquer solo. Esse respeito e a convicção de que o melhor de tudo era tocar com um gênio como Erroll Garner, consequência de uma admiração profunda, rara e de grande humildade.
Misty - A História de Erroll Garner confere um destaque a Kim, a filha escondida, que narra como foi marcante a presença do pai para a sua vida. Gachot promove ainda o encontro de Kim com Rosalyn (a última mulher de Erroll), que jamais se conheceram, uma cena emocionante. O documentário acaba por colaborar na feitura de mais um painel sobre os negros do jazz dos Estados Unidos, desde a origem humilde até o sucesso e a dificuldade de conciliar vida pessoal e profissional com os diversos shows, mas creio que o desvio excessivo para a vida pessoal de qualquer artista (salvo talvez raríssimas exceções) não deveria ser uma vertente muito explorada e o próprio Garner respondeu isso em vida ao afirmar que o público queria era ouvir a música.
Lá pelo fim do documentário há um daqueles depoimento de Erroll Garner que deixam a gente pensativo, tamanho impacto que causa. Lembro de Smith encontrar Kim e a conversa deles encaminhar para uma reflexão bem relevante. Ele diz a ela, que muitos consideram que o valor e o encanto do jazz estão no tocar rápido, o chamado virtuosismo. Não, diz Smith, o principal não é tocar acelerado as notas, mas sim sentir cada som que sai das teclas do piano. E isso fica claro quando ouvimos durante o documentário, Garner tocando várias versões de Misty (segundo ele, você nunca toca a mesma música), a bela canção que foi o seu maior sucesso. Garner é aquele típico artista que podemos dizer que já nasceu músico, e por conseguinte, lenda.
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