Pular para o conteúdo principal

MINHA TERRA ESTRANGEIRA (2025) Dir. João Moreira Salles, Coletivo Lakapoy e Louise Botkay


Texto por Marco Fialho 

Minha Terra Estrangeira mais do que um filme de coletivo traz uma ideia de ajuntamento, típica de uma época em que se precisou resistir às forças de grande poder político e que se colocaram como destrutivas. A grandeza desse documentário está tanto no que ele apresenta em tela quanto o que ele promove fora dela, em especial as estratégias de resistência perante a possibilidade do fim. O fim do mundo dos indígenas aqui se mistura à própria ideia de fim do planeta, o que é pertinente e confere ao documentário uma força extra. O filme retrata a ambiguidade e o absurdo de se sentir estrangeiro na terra que há séculos sempre foi dos povos originários, e não deixa de ser curioso o diálogo do título desse documentário com o filme ficcional Terra Estrangeira (1995)do irmão de João, Walter Moreira Salles, quando este retratou a sensação geral de desamparo que o país viveu à época do Governo Collor de Mello nos primeiros anos da decada de 1990.  

Se a luta é uma só, a direção precisa ser compartilhada, ainda mais que a luta deve estar em lugares diversos, nos Estados Unidos, Europa, São Paulo, Brasília, Porto Velho e diversas áreas do interior de Rondônia. Como o bolsonarismo se alastrou com sua sanha destrutiva para os recantos do Estado, a resistência precisa se ampliar para fora, para que a denúncia ecoe o mais longe possível por instituições que podem efetivamente se unir à causa, que não é só das nações indígenas, mas também da humanidade.  

O compartilhar da direção desse projeto, por tudo isso que foi exposto acima, faz imenso sentido. Assim, Louise Botkay, o coletivo indígena Lakapoy (da nação Pater Suruí) e o maior documentarista vivo brasileiro, João Moreira Salles, se unem para uma tarefa crucial para o país, em um esforço para que os povos originários brasileiros sejam ouvidos em seus gritos de socorro. É antes de tudo uma causa humanitária urgente, o que faz esse filme emocionar qualquer plateia inconformada com os destinos cruéis que o Brasil tomou de 2019 a 2022, durante o governo de extrema direita, que incitou madeireiros, garimpeiros e pecuaristas a se unirem para explorar a todo o custo o solo e o subsolo amazônico, a despeito da existência dos povos originários. 

Para efeito de agilidade e dar conta de várias frentes da luta, o coletivo Lakapoy e João Moreira Salles se dividiram para acompanhar, o primeiro, a campanha para deputado federal pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista) do líder indígena Almir Suruí, e o segundo, a peregrinação de Txai Suruí, filha de Almir, pelo mundo, em busca de apoio e para denunciar o precário e perigoso estado dos indígenas no Brasil sob o comando de um governo pré-disposto a extermina-los. O filme narra esse momento, com diversas cartelas que ajudam a situar o espectador nas discussões. Esse é um bom exemplo de quando o documentário precisa ser didático e informativo, inclusive para cumprir com eficácia tanto seu papel social quanto político.

Hoje, há uma consciência de alguns indígenas de que para a luta do presente, não é mais necessário o uso de arcos e flechas como em outros tempos, a peleja agora está nas redes sociais, no iphone, como diz Almir Suruí em um determinado momento, ainda mais que a guerra com os poderosos é com armas de fogo, o que torna inútil as velhas armas indígenas. A luta desigual está posta a todo instante, com fechamento de passagem dos indígenas por rios, estradas e fazendas por parte dos proprietários de terra. Como fazer campanha política sem visitar as aldeias indígenas? Almir não desiste e a câmera registra uma visita noturna para driblar os gananciosos donos das terras não demarcadas que precisam ser transpostas para se chegar em uma aldeia distante. 

O filme se divide nas filmagens da campanha, em um capítulo chamado de "A história do Pai", em que acompanhamos a andança de Almir pelas aldeias indígenas, numa tentativa de ganhar votos e conscientizar outros grupos indígenas na necessidade de se votar em um dos seus para ocupar um lugar no Congresso Nacional e assim poder levar a discussão e a luta deles para a esfera da política antes ocupada apenas pelos não indígenas. Dos 55 candidatos indígenas que tentaram a eleição para deputado federal em 2022, apenas 5 se elegeram, sendo que Almir não está incluído entre eles por ter conseguido apenas 3.901 votos, dos mais de 25 mil que precisava para se eleger em Rondônia. Mas há o capítulo 2, "A História da Filha", em que acompanhamos a trajetória de Txai Suruí pelo mundo.

Algumas passagens do filme são bem duras de assistir, como a que Txai está de carro atravessando o território de Rondônia e só vê destruição da terra pela ocupação de madeireiros, pecuaristas e mineradores que devastaram a floresta para explorar predatoriamente a terra. E Txai chega a comentar: "Aqui não somos bem-vindos". Há ainda outra cena bem impactante, filmada pelo coletivo Lakapoy, em que Almir comparece a um programa com os industriais para falar de suas propostas como deputado. O mais curioso desse encontro é que Almir inverte a proposta e passa a querer entender as aspirações desses empresários e o resultado é desastroso e triste para as expectativas de vida dos povos indígenas. O que ele, e nós por tabela, escuta é eles dizerem que as riquezas a serem exploradas estão justamente nas terras indígenas e que por isso precisam explorar aquele território. As animações de Lívia Serri Francoio é precisa, por enraizar simbolicamente o sangue indígena pelas imagens do filme, uma beleza a mais no filme, mas que ilustra as consequências dessa ambição desenfreada desses grupos econômicos.  

Mas vale ressaltar as filmagens que João Moreira Salles realiza por meio de seu olhar de homem não indígena. E penso aqui numa conversa aparentemente casual, que o diretor faz com Txai sobre o filme, de como ela se sentia sendo filmada e retratada por um homem não indígena e quais temas gostaria de ver retratados por um filme sobre a sua aldeia. Nessa cena, João está por trás das câmeras e Txai em cena e há um certo incômodo dela em não poder falar de temas comuns à humanidade, de como, por exemplo, é o amor entre os indígenas, mas que a urgência do momento não permite isso. Mas é interessante quando ela diz que gostaria de ser vista mais do uma ativista, também como uma pessoa. Esse é um dos momentos mais bonitos e profundos de Minha Terra Estrangeira, por registrar a personagem fora do ambiente da luta e é incrível que a sensibilidade de João consiga ecoar a voz dessa jovem como mulher e pessoa, para além de ser indígena ou não indígena. Outra passagem realmente cativante é igualmente aleatória, quando vemos e ouvimos Almir descansando numa rede cantando Gitã, do Raul Seixas. Sim, dá um alívio a constatação de que nós também produzimos nossas belezas universais. 

Outro momento fascinante é quando o coletivo Lakapoy entrevista Almir de maneira mais solta, no meio da floresta e ele comenta sobre o conhecimento e o aprendizado possíveis de serem extraídos dela, do poder da observação. Ao ouvir a cigarra ele diz o quando ela está a comunicar o fim do verão, da época da chuva que está por vir. O mais chocante dessa fala é que ela precede justamente o encontro de Almir com os ambiciosos empresários das mineradoras. O contraste é imenso e dilacerante. Há uma poesia na maneira como a direção capta comentários por vezes aparentemente simples, porém cheios de nuances, que no cotidiano nos passa despercebidos como apenas os indígenas tiveram que aprender português para poder negociar com os não indígenas e o quanto isso chega a ser agressivo, porque nasce de uma necessidade, não de um prazer. E o quanto o inverso acontece raramente. 

Minha Terra Estrangeira será daqueles filmes difícil de esquecer, não só pelo tom político fundamental que ele entoa com toda a competência, mas também pela singeleza e delicadeza de mostrar os encantos das almas que retrata. Os personagens possuem uma força de luta e uma dignidade surpreendentes. É a possibilidade de se saber haver ainda beleza no mundo, a sensação de que não estamos sós, de que outras pessoas acreditam e lutam por um outro mundo. Por isso, Minha Terra Estrangeira é um filme sobre a esperança de um país e de planeta que precisa renascer a partir dos ensinamentos e da luta de seus povos originários.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...