Texto por Marco Fialho
Lan, O Caricaturista é um documentário intimista, um retrato sensível de um dos grandes desenhistas em atividade no Brasil até pouco tempo atrás. A proposta do diretor Pedro Vinícius valoriza tanto o artista quanto a personalidade desse italiano vindo da Toscana que adotou o Rio de Janeiro como sua residência. O diretor centraliza sua narrativa na casa fora da cidade do Rio de Janeiro que Lan passou seu final de vida com tranquilidade ao lado da amada Olivia, sua esposa por mais de 50 anos. Por mais que o filme traga algumas imagens de arquivo, a narrativa prioriza imagens de Lan em sua vida cotidiana em sua bucólica fazenda.
Tudo flui de maneira bem lenta aos ritmo de Lan, muitas vezes curtindo sua poltrona em companhia de uma taça de vinho e relembrando fatos da vida pessoal e profissional, ou o vemos em sua mesa de trabalho esboçando um desenho e discursando sem pressa sobre a vida. O tema da memória aqui é central, nessa história contada de maneira a respeitar o ritmo do artista. Vários causos pitorescos são lembrados, em especial os relacionados à carreira que desenvolveu tanto no Uruguai quanto no Brasil. Lan narra episódios da época em que trabalhou no jornal de Eva Perón nos idos dos anos 1940 e início dos 1950, oportunidade em que foi intimado pela chefe a desenhar mais mulheres, o que viria a transformar a carreira do jovem artista.
O documentário explora bastante suas paixões, como as mulheres, o futebol, o desenho, a caricatura e a música (em especial o samba). O encanto pela cultura popular carioca está mais do que presente e encontra-se surpreendentemente enraizado no trabalho. A direção de Pedro Vinícius é de rara sensibilidade e extremamente minuciosa na produção das imagens, quase sempre desfocadas nas bordas para emular a visão precária de Lan à época das filmagens.
A simplicidade da proposta combina com a vida pretendida por Lan, sem grandes sustos ou arroubos. A profusão de closes no rosto do caricaturista preenche a tela grande, com sua invasão deliberada prestes a revelar os pensamentos e o espírito quieto e firme do artista. Chama atenção a sua visão crítica acerca do mundo, revelada no seu trabalho como chargista político e caricaturista, em especial no longo tempo que foi funcionário do Jornal do Brasil. Inclusive, Lan gostava de dizer que o papel da caricatura não era destacar o aspecto ridículo do retratado, mas sim a essência de uma pessoa, vislumbradas por seus traços mais marcantes, uma arte da observação.
Entretanto, mesmo que o documentário mergulhe na delicadeza para falar de seu protagonista, não se deve esperar de Lan, O Caricaturista grandes ousadias formais, o diretor Pedro Vinícius não pretende aqui, para a nossa felicidade, lançar desafios de linguagem ou narrativas rocambolescas. O filme parte da vida de um casal que ama dividir a vida até o fim da vida, um exercício fundamentalmente de memória e de amor. A trilha sonora de Pablo Uranga sabe não só se colocar a serviço da ideia de leveza como a reafirma sistematicamente. A música diegética é incorporada à narrativa com uma naturalidade espantosa, às vezes proporcionada pelo próprio protagonista, que ama ouvir seus lps.
Lan, O Caricaturista se prende muito aos detalhes, na vida de um homem que valoriza as pequenas coisas, como o farfalhar do fogo e o prazer de sentir o corpo se aquecer com ele, acompanhado de um bela taça de vinho, claro. O filme me passou esse calor, essa vontade de abraçar o personagem, em sua aparente indiferença a ele. A câmera oscila ora invasão, pelos closes no rosto e ora distanciamento, como se quisesse respeitar o tempo do artista. Curioso como a direção não tensiona as cenas, não faz provocações e parece flutuar pela maravilhosa casa de Lan.
A sutileza de algumas cenas me encantou, assim como a tranquilidade com que o protagonista desliza pelo cenário. Assim, vemos Lan se divertir com suas memórias, passear pela linda parte externa da casa e dissertar sobre seu deslumbramento com o Rio de Janeiro, que descreve como cidade-mulher, com suas curvas e temperada com uma cultura popular envolvente.
Contudo, Lan sabe saborear igualmente o presente e isso fica latente quando ele diz que a cidade grande nos faz compulsoriamente desviar o olhar para o chão, devido aos desníveis das ruas e seus obstáculos constantes e que a experiência de viver na fazenda deslocou seu olhar para observar a beleza do céu. Pedro Vinicius assume o risco de caminhar na mão inversa da espetacularização tanto do filme quanto do personagem e assim vai além da homenagem, ao alinhar a obra à vida de Lan e deixando o passado brotar pela memória do entrevistado com um gosto doce de quem sabe que revestiu de sentido sua vida. A tal sensação de dever cumprido, que Lan em uma fala quase no final profere. E assim o filme se vai como o seu protagonista, se apagando com delicadeza.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!