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HUMPHREY JENNINGS NO "É TUDO VERDADE" 2025


Texto por Marco Fialho

Humphrey Jennings é um cineasta desconhecido no Brasil, infelizmente. A importância de um festival do porte de um É Tudo Verdade é esse, poder trazer à baila uma obra historicamente determinante, mesmo que pouquíssimo conhecida de nós.    

As escolas de cinema muito falam de John Grierson, o escocês que foi o grande mentor da escola inglesa de documentários e responsável por instaurar uma forma de pensar o gênero documental no cinema como autônomo ao ficcional. Essa maneira de conceber o cinema ficou reconhecido como clássico de se fazer filmes não ficcionais, com cunho educativos, vinculados a uma estratégia de propaganda do governo inglês. Grierson criou então a GPO (General Post Oficce), produtora que viabilizou diversos filmes basilares para a história do documentário mundial. 

Humphrey Jennings começou a sua carreira no cinema na GPO, mas o mais curioso é que com o tempo, sua abordagem de filmar se diferenciou da defendida por Grierson. O seu estilo mais poético e lírico, o afastou da vertente mais áspera do mestre escocês, em especial de sua narração em off, também conhecida como a famosa voz de Deus, já que o espectador não consegue identificar quem está a narrar o filme. 

O festival É Tudo Verdade colocou o documentário televisivo Humphrey Jennings - O Homem Que Ouvia a Grã-Bretanha (2000), dirigido por Kevin MacDonald, precedendo a exibição de dois curtas de sua autoria: Tempo Livre (1939) e Londres Resiste (1940). O longa de Kevin MacDonald acaba por praticamente contrariar a visão de Humphrey Jennings de como fazer um documentário. O estilo griesoniano prevalece, o que chega a ser uma ironia para quem tanto privilegiou a estrutura mais livre e menos hermética de narrar. Mas é evidente que a pretensão do filme é de ser careta mesmo, o próprio tempo por volta de 55 minutos já entrega o objetivo informativo do documentário. O interessante dele é fazer um painel sobre a obra de Jennings, desde o início entusiasmado da carreira até o final onde se abate sobre ele um sentimento de melancolia em relação ao cinema.       

Mas o melhor mesmo foi assistir aos dois curtas de Humphrey Jennings e poder admirar o espírito ousado e livre com que literalmente escreve com sua câmera. Em Tempo Livre, o diretor parte de uma pergunta: "Tempo livre, o que fazemos dele?", que incita uma sucessão de imagens que vão se costurando em um emaranhado de afazeres cotidianos inspiradores. Um rapaz lê uma HQ, enquanto a mãe põe a mesa do lanche da tarde, e logo depois vemos outro indo ver uma partida de futebol em um estádio. A natureza dessas imagens são surpreendentes porque a aleatoriedade delas são aparentes e obviamente pré-encenadas, algumas na intimidade do lar. Essa artesania das imagens nos fazem pensar sobre as fronteiras evidentes que Jennings propõe entre o documentário e o ficcional.     

É bom lembrar que Jennings anuncia que seu interesse é registrar a vida cotidiana dos trabalhadores do carvão, aço e algodão. Há um cuidado com a produção dessas imagens, um esforço fotográfico extraordinário, com várias cenas belíssimas. Não que esse preciosismo do diretor possa o enquadrar como esteticista, mas é inegável o apuro nos contrastes do preto e branco e nos ângulos escolhidos. Há uma elegia à classe trabalhadora, um esforço em valorizar o lado humano, o que confere a eles uma dignidade. É um primor, as cenas registradas de um baile, onde casais rodopiam em um salão elegante. Essas descrições pela imagem, me fez lembrar do historiador inglês E. P. Thompson, que dedicou sua vida a pesquisar sobre a cultura e o cotidiano da classe trabalhadora inglesa, de registrar as formas de resistência de um grupo que trabalhava além do razoável, em uma época em que as leis protegiam o direito dos patrões em explorar seus empregados.   

Por sua vez, a montagem de Tempo Livre possui uma certa celeridade, é ágil e funciona como uma colcha de retalhos de imagens que se combinam com rara beleza. Enquanto toda a Escola Inglesa da GPO prima pela narração em off, aqui ela é praticamente abolida em nome dessa ideia de se realizar um mosaico de imagens abarcando o tempo livre desses trabalhadores. Tal como Vertov, o protagonismo é do coletivo, não de um personagem específico. É interessante que a divisão que o diretor faz dos grupos de trabalhadores não traz muitas diferenças entre eles, pois as distrações usufruídas nas folgas não se diferenciam tanto uma das outras. As bebidas em pubs, o jogo de basquete, a diversão em um parque de diversões, a música e os encontros, marcam de maneira indefinida a vida social dos trabalhadores. O que fica de Tempo Livre é a síntese de imagens positivas acerca dos trabalhadores ingleses, uma bela e apaixonada homenagem.

Já em Londres Resiste, Humphrey Jennings narra os bombardeios aéreos noturnos que a Alemanha nazista lançou contra Londres. É incrível como o diretor extrai tanta poesia de um momento tão trágico da vida inglesa. A começar pelo contraste entre a tranquilidade do dia, em que as pessoas saiam para trabalhar e a dureza de suportar a noite com suas explosões. Jennings narra o filme como um suspense e explorando os contrastes entre a escuridão da noite e o cintilar das bombas flamejantes. 

As imagens desse filme são poderosas, falam por si e nos fazem reféns delas. Como bem registra a narração de Londres Resiste, são cinco séculos destruídos em cinco horas. Uma analogia que enaltece o heroísmo dos cidadãos voluntários, que se transformam em bombeiros e que enfrentam os bombardeios no esforço hercúleo para apagar o fogo das explosões.             
Mais uma vez Humphrey Jennings edifica heróis com sua câmera e mais uma vez elas são coletivos, anônimos e guerreiros. A ideologia do diretor é notória, a sua crença na classe trabalhadora e sua força para erguer um país com dignidade e luta. 

Em Palavras Para Batalha (1941) Jennings faz um tributo artístico à Inglaterra em guerra contra os nazistas, mas o faz juntando às imagens do seu país a poesia de escritores clássicos ingleses como Kipling, William Blake e William Shakespeare, narrados com a voz magnética de Lawrence Olivier, o icônico ator do teatro shakespeariano inglês. São 8 minutos de pura beleza, para sentar e se admirar. 

A Vila Silenciosa (1943) é um cinema com as feições típicas da obra de Humphrey Jennings, o apreço pela vida coletiva, o banho dos mineiros e a solidariedade de esfregar as costas manchadas de carvão um do outro, a cerveja nos pubs e a vida tranquila na pequena vila. 

O diretor registra a leveza da vida cotidiana desses trabalhadores e mulheres apaixonadas pela vida. Jennings enfatiza a vida pacífica até a chegada dos nazistas, para instaurar outra lógica. As associações e sindicatos são fechados e o idioma é proibido, assim como cantar as canções tradicionais. Jennings não mostra um rosto sequer dos invasores e reencena a luta da resistência. A reação nazista é implacável e o filme salienta o caráter da memória como um papel central do documentário para a humanidade.

Começaram Incêndios (1943) trata do trabalho heroico dos bombeiros em Londres durante os bombardeios noturnos alemães. Esse é um filme que dialoga diretamente com Londres Resiste, ao mostrar a importância desse grupamento que não deixava as chamas se alastrar para outras áreas da cidade. O mais interessante desse filme é como Jennings reencena praticamente todo a história noturna, que é narrada como um verdadeiro épico, com direito a uma música que corresponde a esse anseio de grandiosidade das ações narradas. A cada nova cena, a tensão aumenta gradativamente e o documentário ganha contornos de um filme de aventura. Mas Jennings não deixa de reafirmar aqui sua crença na força da coletividade. Seus filmes, definitivamente, não cultuavam heróis individuais. 

Durante toda a vida, Jennings só realizou um longa metragem, mas essa inclinação para os filme curtos faziam sentido. Ele queria ser preciso e rápido na sua convicção de que o cinema documentário precisava ser um tiro certeiro. E nessa arte ele foi um mestre que sabia acertar o alvo bem no centro. 



* Para quem quiser saber mais sobre a história do documentário indico o excelente livro "Espelho Partido", de Silvio Da-Rin, publicado pela Azougue Editorial. 

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