Texto por Marco Fialho
O termo grand tour era usado por parte de uma elite europeia no século XVIII, inclusive inglesa, e depois da América, para designar um tipo de viagem de jovens para as principais capitais europeias reconhecidas como berço da humanidade, com lastro histórico e cultural sobretudo na Antiguidade Clássica.
O filme homônimo de Miguel Gomes se utiliza do mesmo termo, mas o subvertendo sobremaneira. Primeiro na época histórica, já que Edward (Gonçalo Waddington), nosso protagonista, é um homem do século XX, um funcionário inglês em um país do Oriente, que foge da noiva Molly (Crista Alfaiate) no dia em que ela está chegando para concretizar o casamento. Segunda subversão é a realização do tal passeio como fuga, não como um plano educacional, em conformidade com a tradição. Terceira subversão, e talvez a mais importante, é que esse tour histórico não é realizado em países europeus, como rezava a tradição, mas em capitais asiáticas, muitas delas berço de culturas milenares, normalmente desprezadas pelo viés eurocêntrico que marcava esse tipo de viagem instrutiva.
Miguel Gomes realiza um filme com toques sutis de ironia, rebeldia e reinvenção. O cineasta de Aquele Querido Mês de Agosto (2008) e Tabu (2012) a cada novo filme exibe sua ousadia formal, com mise-en-scène marcada por um despojamento calculado, uma narrativa aparentemente frouxa, caracterizada pelos deslocamentos dos personagens e alternância de pontos de vista. Grand Tour assim se enquadra perfeitamente no universo idiossincrático de Miguel Gomes, na sua visão desconstrutiva da narrativa que parece quebrantada pela fragilidade dos próprios personagens, inseridos na trama com profunda crise existencial. Edward e Molly ambos soam deslocados, por viverem em uma realidade que não condiz mais com o mundo a sua volta, são dessincronizados e anacrônicos perante o mundo. O desencontro do casal gera para cada um dos dois, a possibilidade de outros encontros e o filme cresce a partir deles. Na perspectiva desse encontro, jamais realizado, brotam conhecimentos e amadurecimentos para ambos.
Importante pensar o ano em que o filme transcorre em 1918, isto é, no final dos anos 1910, um contexto de crises, de uma Europa brigando entre si, em guerra pelos mercados da África e Ásia, um universo propício ao desbunde existencial, que será mais evidente nos anos 1920. Miguel Gomes está a dialogar com personagens nesse conturbado contexto, cujo terreno é pedregoso, incerto e de imensa instabilidade traduzido por uma fotografia em preto e branco atemporal (raras são as cenas coloridas) e que causa uma sensação de distanciamento. Inclusive, o tempo é algo misterioso, pois vemos os personagens transitando nas cidades em suas aparências urbanas contemporâneas, ao invés de adaptadas à época abordada. Esse é outro ponto curioso na versão que o diretor faz dos tradicionais grand tour do passado, o presente pode representar imageticamente cem anos atrás e está tudo bem (ou quase).
O cinema de Miguel Gomes é daqueles que mexe, que balança com os processos perceptivos do espectador. Durante toda a sequência inicial, em que Miguel Gomes nos apresenta Edward, não o vemos, apenas somos imersos nas imagens da cidade em que ele se encontra. Fazemos então o nosso grand tour. Enquanto a narração em off descreve o personagem, as imagens descrevem o lugar, como se apresentasse para nós uma nova proposta de grand tour, ou melhor, uma necessária atualização da ideia de passeio instrutivo de outrora, de se conhecer algo que a prepotência cultural europeia historicamente menosprezou. Gomes nos diz: os tempos são outros e não podemos apenas retratar, precisamos refletir e por em suspenso o passado, em especial despir o espírito colonial que grassou por muito tempo.
As ousadias narrativas que Miguel Gomes implementa em Grand Tour, lhe valeu um prêmio de direção no Festival de Cannes, que se curvou perante o cinema inventivo (que prefiro chamar de reinventivo) do diretor português. A língua que ouvimos no filme são sempre a dos habitantes locais onde os protagonistas estão, numa flagrante demonstração de que não podemos mais acatar essa ideia do inglês como língua universal. E como é bonito ver o português sair da boca dos personagens ingleses. O desconhecimento da língua local, colabora para que Molly e Edward fiquem mais desnorteados do que nunca em suas passagens por essas culturas tão ricas e diferentes das suas. O filme de Miguel Gomes horizontaliza, emprega uma ideia de holocracia, um tipo organizativo autônomo, que não parte de uma ideia de centro como princípio de uma análise.
Quando Edward abandona a sua posição diplomática na Birmânia, partindo para um tour aleatório pela Ásia, e por diversos países desse Continente, ele não é mais um funcionário da diplomacia inglesa, o seu contexto político e hierárquico se desmonta, se despedaça. Gomes se utiliza dos temporais tropicais para desfazer a aparência europeia do vestir-se com determinada correção de Edward, para o colocar em outro lugar e posição no mundo, ele é uma espécie de nau perdida em um rio caudaloso e sem destino, levado à deriva pela sua crise existencial. Trens, barcos e todo o tipo de transporte, alguns locais, levam Edward para uma aventura em ritmo de fuga de si mesmo, para longe de tudo para o qual foi educado e preparado para ser.
Uma das sequências mais fantásticas de Grand Tour é quando Edward dá continuidade ao seu plano de fuga, saindo de um salão de um país asiático europeizado, onde todos dançam a valsa de Strauss, para embarcar em um barco de pesca rudimentar e logo depois ganhar às ruas de Saigon ainda imersa na pandemia do Coronavírus, sob o som da mesma valsa de antes. Gomes filma isso como um grande delírio e como um processo necessário de humanização do personagem. Mas registra como fosse um documentário, ao mostrar um mundo oriental múltiplo, tomado pela ocidentalização, embora as marcas da tradição eclodam inesperadamente de qualquer lugar, em qualquer hora. Depois de 100 anos passados, como estão os países que foram colonizados pelos europeus? As imagens nos interrogam atonitamente a respeito disso.
Grand Tour não deixa de ser uma grande ode a esse mundo Oriental transformado pela cultura Ocidental, dominado pelo capital financeiro, e que lentamente vai perdendo a sua face milenar, mesmo que os nossos olhos ocidentais ainda identifiquem algo que pode esbarrar no exótico ao fitar os rastros deixados pelos antepassados. Mas de qual Oriente estamos a falar então, já que a influência do Ocidente se fez à base da força, pela violência das armas e do dinheiro? O interessante é que Gomes registra e permite que as imagens e sons fiquem como interrogações para o confuso mundo que vivemos.
Mas no meio disso tudo, dessa confusão de culturas e dispersões visuais, tem Molly, a noiva. Miguel Gomes brinca com a temporalidade de Grand Tour quando tira de cena Edward, e passa a perseguir Molly com sua câmera. O tempo volta para acompanharmos a peregrinação de Molly à procura de Edward. E assim, o filme muda a sua perspectiva e continua fascinante do mesmo modo. Descobrimos que o tempo de Molly não é o do futuro, mas sim do presente, só que agora estamos acompanhando a trajetória dela no Oriente, o seu grand tour.
Grand Tour pode ser entendido por diversas leituras, pois nada nele é incisivo e conclusivo. Sua grandiloquência visual e narrativa permite muitas leituras, como toda a grande obra faz. Miguel Gomes realiza a sua obra-prima, um filme de grande impacto sensorial, que perscruta a alma de um processo de decadência inevitável quando o mundo é ditado pelo âmbito político e econômico, quando um país ou uma cultura se pretende ser maior ou melhor do que outra, quando o desejo de aniquilação caminha como projeto. Miguel Gomes bota o dedo nessa ferida ao mostrar a importância de se horizontalizar os processos de assimilação cultural. E isso não é pouco.
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