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DREAMS (2024) Dir. Dag Johan Haugerud


Texto por Marco Fialho 

Dreams, vem fechar a trilogia do cineasta norueguês Dag Johan Haugerud iniciada por Sex e Love. Eu diria que Dreams, premiado com o Urso de Ouro no 75º Festival de Cinema de Berlim, é o que mais se aproxima das narrativas francesas ancoradas especialmente no exercício do texto escrito, um cinema que evoca, em certos parâmetros, a obra mais contemporânea de Éric Rohmer, em seu ensejo de discutir as relações humanas a partir de sensações e subjetividades. Não casualmente, uma das bases da trama de Dreams é um texto lido em voz over, que tudo sugere ser os escritos da própria adolescente Johanne (Ella Overbye).

É possível ainda dizer que Dreams é um filme sustentado basicamente mais por um roteiro bem azeitado do que por uma encenação caprichada e o início do filme explicita muito sua proposta de realização: enquanto vemos imagens de céu e nuvens, ouvimos a voz de Johanne ao fundo falando de seus sentimentos, de um ponto de vista de uma jovem em conflito consigo mesma. Ao mesmo tempo em que há uma evocação e uma elucubração decisiva sobre sua autodescoberta. Boa parte de Dreams é isso, o discurso de uma voz interior sendo posta para fora, numa necessidade incansável e repetitiva de tentar entender a experiência emocional de uma adolescência na descoberta inesperada de que está apaixonada, que precisa sentir o corpo de seu objeto de desejo junto ao seu. 

Admiro muito o trabalho de Dag Johan Haugerud em construir com habilidade e cuidado a jornada de uma adolescente e sua sexualidade, sem pretender criar rótulos impostos pela sociedade como estigma. Sua protagonista vive, reage ao que vive e transforma isso em poesia, tanto que estranha quando a mãe enquadra sua vivência escrita como queer, pois o que está em jogo não é uma necessidade dar uma nomenclatura ou de classificar seus desejos. E nessa abordagem há um respeito pelo processo ditado por uma intuição e pelos desejos, cuja atração sexual está intrínseca ao próprio cotidiano escolar de Johanne. 

Dreams centraliza suas ações e reflexões em cima da projeção que Johanne faz de sua relação com a professora de francês e norueguês Johanna (Selome Emnetu). O que inicialmente é uma viagem pessoal, de sonhos e imaginação, torna-se logo uma obsessão da aluna se enamorando pela professora, encantada com a maneira acolhedora dela, pela inteligência, pela personalidade em parte oriunda de uma maior vivência. Mas essas experiências fazem parte da vida da grande maioria dos jovens, de admirar um adulto que está na posição de abrir um novo mundo a partir do conhecimento. 

Mas é crucial repararmos que a narrativa de Johanne é toda autocentrada. A todo instante, o que ouvimos é tanto a sua voz over quanto a diegética ora expressando sensações (e elas são fortes e latentes) ora descrevendo e analisando fatos da sua convivência com Johanna. Por isso, apesar de não-dito, somos os primeiros a conhecer partes do livro, que depois será discutido e publicado, e descobrimos isso com o próprio andamento do enredo, com os comentários proferidos pela mãe, a avó e a editora.                       

É interessante observar Johanne a partir do que Dag Johan Haugerud constrói, em especial pelo apagamento gradual de suas amizades de escola, praticamente sem subjetividade, postas ali apenas para revelar a personalidade e os sentimentos da protagonista. Dreams não é, portanto, uma experiência de jovens, mas sim de uma jovem. Apenas Johanne é o foco da análise do filme. Por isso, a direção insere com mais força na trama a mãe Kristin (Ane Dahl Torp) e a avó Karin (Anne Marit Jacobsen). São elas as personagens que mais vão interagir com Johanne, e que ainda situarão para o espectador as diferenças geracionais, a avó aquela mulher mais independente do final dos anos 1960 e início dos 1970; a mãe, uma mulher da virada do século XX, com uma vida mais objetiva e aprisionada pelo mercado de trabalho e pela sobrevivência da família. A discussão entre Karin e Kristin sobre o filme Flashdance (1983), funciona como uma linha divisória sobre como mãe e avó viam a vida de maneira diversa. A relação de Johanne com as duas é fundamental e o livro funciona como um rito de passagem dela em um seio familiar em que os homens estão ausentes. Johanne traz um traço lúdico de uma geração em diálogo constante consigo mesma e que tem dificuldade de sair desse universo autocentrado. 

É interessante como Dreams abre sempre portas, talvez até pelas insistentes cenas de escadas que o filme constantemente evoca, com Johanne as subindo e as descendo, como se oscilasse entre a maravilha do sonho (do inconsciente) e a crueldade do mundo (do consciente). Mas é curioso como em uma dessas subidas reencontra Froydis (Ingrid Giaever), uma jovem que assim como Johanne também foi aluna e apaixonada por Johanna e elas podem enfim começar um novo sonho para ambas (ou quem sabe um novo pesadelo?). Se pensarmos na trilogia como um todo, veremos que jamais uma ideia é uma só coisa, algo que se basta em si mesmo. Sexo, amor e sonhos estão presentes nos três filmes, pois é difícil a tarefa de falar de um desses temas sem se esbarrar nos outros, embora Sex fale de um mundo onde os sonhos estão no chão, e Love, o sexo seja bastante frequente na vida dos personagens. Já em Dreams, a ideia de amor intenso permeia todo o filme.     

Afinal, Dreams é ou não uma obra sobre sonhos? Dag Johan Haugerud realiza um filme bastante tátil, cujo motor das próprias imagens reforçam uma ideia de fisicalidade. As ruas, as roupas de tricô, os cabelos longos e o bairro chique da professora são cruciais para a imersão do espectador na proposta sensorial de Dreams. Há no filme, um sentimento de se apegar às coisas como uma característica de um mundo em transição, em especial, sintetizado por um pequeno objeto que Johanne sempre trazia em mãos e que ao final possui um simbólico de amadurecimento quando decide o abandonar. Dreams é sim um filme sobre os sonhos que ficam pelo caminho, como se a juventude fosse a materialização inconsciente de um universo onírico que aos poucos é desfeito pela maturidade. O filme pode significar muitas coisas, sobretudo como ele corporifica e dá força às palavras. As imagens e sons estão postos na obra mais como sensações, como anteparos para que as palavras deslizem e hipnotizem nossos sentidos, numa cantilena de esperança sobre a possibilidade do amor. O amor como um espírito encantado quase inalcançável, a não ser pela força da nossa imaginação.

Cabe ainda lembrar de algo que acontece lá no final de Dreams, a reflexão da professora Johanna sobre o teor do livro de Johanne (ou seria do próprio filme que encarna esse livro?), de como se sentiu abusada por uma visão que no fundo a obscurece ao lhe extrair a subjetividade, afinal tudo que sentimos é pelo olhar de Johanne e não de Johanna, como se ela só existisse a partir de Johanne. Isso nos fez pensar sobre como o cinema também possui essa violência cruel da escolha por pontos de vista, que ao mesmo tempo que liberta uns personagens, pode também aprisionar outros, como se no nosso sonho residisse o pesadelo de alguém, como um e outro caminham juntos, e ambos, são incontroláveis.

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