Texto por Carmela Fialho e Marco Fialho
Em 2025, a tradicional Mostra Homenagem Retrospectiva Brasileira do festival É Tudo Verdade traz à sua edição de 30 anos um apanhado dos filmes de um dos mestres do nosso documentário, o paraibano Vladimir Carvalho. A homenagem é mais do que justa. Assistir a um filme dele é partilhar a sua paixão em construir cada detalhe, cada imagem e som. O cinema de Vladimir é antes de tudo envolvente, caudaloso em seu fluxo e possui uma rara densidade narrativa. Seus documentários parecem aqueles sanduíches bem recheados e que por isso matam a fome cinematográfica de qualquer cinéfilo. Tanto nos filmes de denúncia, como em Barra 68 ou Conterrâneos Velhos de Guerra, ou histórico como O País de São Saruê, ou ainda os políticos como O Evangelho Segundo Teotônio e Giocondo Dias, O Ilustre Clandestino, ou mais ainda os tributários como O Engenho de Zé Lins e Cícero Dias, O Compadre de Picasso, Vladimir demonstrou uma consistência narrativa surpreendente e manteve um propósito de trazer para o documentário brasileiro um sentido e um sentimento crucial de memória e de reflexão profunda de nossa história. Ele tinha a competência de laçar a atenção do espectador desde a primeira cena, um feito extraordinário relegado a poucos cineastas. Devido aos outros filmes do festival, não conseguimos rever todas as obras de Vladimir em exibição, mas fizemos questão de assistir a pelo menos uma delas, Cícero Dias, o Compadre de Picasso, para poder lançar esse texto e reafirmar a importância dessa homenagem.
No documentário Cícero Dias, o Compadre de Picasso, Vladimir Carvalho aborda a carreira do artista plástico a partir de depoimentos do próprio artista e de diversas vozes contemporâneas que conviveram com ele como esposa, filha, historiadores, artistas e biógrafos.
A opção do diretor foi por seguir uma ordem cronológica, desde a sua infância até a sua obra no Marco Zero de Recife na virada do milênio. A longeva existência e as várias fases artísticas de Cícero passeiam pela tela em suas obras icônicas, entrecortadas pelas observações de seus impactos na época da realização e as polêmicas que suscitaram na conservadora sociedade do Recife, espantada com o erotismo vivaz e insinuante presente na obra de Cícero Dias.
Vladimir Carvalho sublinha os principais temas e estilos artísticos de Cícero Dias, que não economizou esforços em incorporar princípios modernistas, como o da valorização do homem comum na sua obra. Um dos principais trabalhos do artista foi um mural com mais de 40 metros de extensão, que se transformou em um dos seus quadros mais comentados e respeitados, uma verdadeira síntese da bem-sucedida primeira fase da carreira, inteiramente tomada pela visão sensual, onírica e popular do mundo.
Uma segunda fase de Cícero Dias foi desenvolvida na sua longa estadia por Paris, onde influenciado por Picasso, absorveu o abstracionismo como um dos elementos de sua obra. O onírico surrealista fica de lado nessa fase, o que desagrada à elite cultural recifense, que se demonstra decepcionada com os novos traços do artista. Mesmo residindo anos na Europa, Cícero jamais deixou de retratar a sua Pernambuco, segundo a esposa Raymonde, o corpo estava em Paris, mas a cabeça em Recife.
A presença de Othon Bastos fazendo a voz over de Cícero, lendo seus diários, acrescenta uma tonalidade a mais ao documentário. Os textos de Cícero Dias são muito bem escritos, o que facilita o trabalho competente e afinado de Othon. Fernanda Montenegro faz com a vibração de sempre a voz de Raymonde, a esposa do artista.
Wladimir Carvalho inicia e finaliza o filme no túmulo de Cícero no célebre cemitério de Montparnasse em Paris, que tem uma obra de Cícero Dias, com a epígrafe "J'ai vu le monde... il commençait à Recife" (Eu vi o mundo... ele começava no Recife). Partindo dessa imagem somos conduzidos pelo diretor para o interior de Pernambuco com o propósito de traçar um inventário da memória afetiva de Cícero na infância no engenho, procurando mergulhar no imaginário do artista.
Wladimir passeia pela rica vida de Cícero que transitou por Recife, Rio de Janeiro, Paris e Lisboa, destacando suas amizades com outros artistas e escritores famosos como Manuel Bandeira, Gilberto Freire, Di Cavalcanti, Ariano Suassuna, Francisco Brennand. Já na França, foi amigo pessoal de Picasso, que foi padrinho de sua filha e de Paul Eluard, que pediu que Cícero levasse clandestinamente da França para Lisboa poemas famosos como Liberté, na ocasião em que Cícero fugiu da perseguição nazista.
Outro mérito do filme é a profusão de fontes utilizadas por Wladimir que mergulha em fotografias, obras, depoimentos de amizades de várias épocas da vida de Cícero Dias. A grande quantidade de imagens do artista mesclada com as entrevistas do próprio Cícero em diversas fases de sua vida, ainda contou com descrições detalhadas de biógrafos e amigos como Brennand, que trouxeram riqueza de detalhes da personalidade de Cícero, assim como a análise de especialistas sobre as fases da sua pintura.
A montagem do filme soube utilizar com maestria as várias fontes para construir um documentário interessante que provoca o espectador a querer conhecer mais sobre a obra de Cícero Dias, além de tornar o seu trabalho eterno através do cinema para as gerações futuras.
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