Texto por Marco Fialho
Um filme pode ser realizado de várias formas, assim como pode ser montado de modos infinitos. Em Bruscky: Um Autorretrato, o diretor Eryk Rocha se deixa levar pelo personagem, se rende a ele e é tomado por ele. A impressão que dá é que o artista Paulo Bruscky, de certa forma, monta o filme de Eryk, e não quero dizer com isso que o personagem está lá defronte o computador fazendo as escolhas, mas sim que Eryk está imbuído de tal maneira do processo dele que se permite pensar como o artista pernambucano montaria o filme sobre ele.
Um das coisas que toma corpo durante a projeção de Bruscky: Um Autorretrato é o apego de Paulo pela vida, o mundanismo inerente ao modo de viver e isso é fascinante nesse documentário que não quer retratar e sim pensar junto com o artista. Esse é um filme crepuscular, que atesta a sua irregularidade em prol de captar um fluxo de pensamento. No filme, captar é mais importante que o próprio narrar em si, e nesse sentido, esse é um antidocumentário.
Aqui o artista precede à obra, pois o que interessa é como Paulo Bruscky participa do mundo e como intervém nele. Os riscos são muitos, mas há um processo intuitivo que corre junto com as filmagens e fica evidente que elas são retomadas e dialogadas no processo de montagem. Isso porque esse é um filme sobre o olhar. O olhar de Bruscky e Eryk para o mundo, para a criação e a reinvenção. O filme pode parecer caótico, mas não é, muito pelo contrário, o considero altamente organizativo e seletivo, pois se quer o olhar diferenciado de um artista sobre a vida e o viver, o desejo desenfreado de se captar o estar no mundo com a intensidade que só os poetas sabem fazer.
Logo na primeira cena, Paulo Bruscky é desafiado pela câmera colada em seu rosto e o embate está posto. A câmera é reveladora, tem o poder de desconcertar e discursar ao mesmo tempo. Eryk sabe disso e sempre que pode tenta invadir Bruscky pelo olhar. O artista se conhece pelo olhar que lança no mundo. Logo a seguir, um turbilhão de imagens pipocam na tela como se Eryk almejasse decifrar o pensamento conturbado de Bruscky. O dispositivo que vem logo depois é o que Eryk mais utiliza no restante do filme: colocar a câmera na mão para tentar ver o mundo pelos olhos de Bruscky. A rua é a matéria bruta do artista Paulo Bruscky. É lá que tudo está vivo e fora de controle, onde a vida pulsa à revelia do artista.
Mas Bruscky: Um Autorretrato é antes de tudo um filme de intervenção e isso fica muito evidente quando não só o vemos, mas também nos permitimos a ouvi-lo, já que nesse terreno a montagem corre em paralelo. Aqui há uma constante recriação sonora do mundo pelo filme. Há a criação de uma música que dialoga ruidosamente com o personagem, que entra em um embate com ele, são sons que parecem vindos diretamente da sua atividade cerebral. São ruídos mixados, falas, repetições de diálogos em eco, músicas ao fundo com diversas modulações, tudo é recriado irregularmente, ruidosamente, em um efeito criativo e de embate com Paulo. O artista é ação e pensamento, é reação e reflexão, tudo junto e Eryk quer mesmo ver o circo pegar fogo. Os excessos sonoros e imagéticos são arriscados e esse é o fascínio do filme, se assumir em suas ranhuras, sujeiras e imperfeições. Estamos diante de um poema ruidoso repleto de repetições.
Quem me acompanha, sabe o quanto eu reclamo do uso da câmera na mão nos filmes. Antes de ser uma implicância, a minha intolerância vem da falta de necessidade mesmo. Em Bruscky: Um Autorretrato ela faz todo o sentido, afinal, esse é um filme de captação. Se não houvesse a perseguição se perderia, por exemplo, Paulo Bruscky em uma loja de quinquilharias comprando objetos aleatórios e deixaríamos de ouvir a dona dizer que só o artista compra objetos desconectados um do outro, diferente da maioria de seus clientes que entra para comprar determinados itens de coleção. Essa cena filmada com a câmera na mão é crucial para se captar algo essencial para a constituição de como esse artista pensa a arte e o mundo. Realmente, não se pode filmar o caos com a câmera inerte.
Outra história que só faz sentido em um processo de captação é a do sebo, onde em um encontro aleatório se conversa sobre o pensar a vida a partir do buraco feito pelos cupins. Os animais tem um papel fundamental no pensamento de Bruscky, como revelação da vida, do instinto como uma forma de pensar e reagir ao mundo excessivamente racionalizado. Olhar para objetos aparentemente inúteis é outra estratégia interessante do artista, de encara-los, de deixa-los falar e dizer ou interrogar algo. Esses são processos sem filtros que o artista estabelece para (re)ver o mundo, sem autocensura. Esse conceito da autocensura é fundamental para se estar no mundo, mas também para não se curvar a ele, por isso em Bruscky: Um Autorretrato, a imagem torna-se ruído. Ela não está posta como identificação, mas como estranhamento, como um elemento a refazer nosso olhar das coisas que nos cercam.
Em um determinado momento, Bruscky diz que "eu falo quando calo e calo quando falo" e discursa sobre a necessidade de se apagar algumas palavras antes delas chegarem até ele. São jogos de palavras, mas que aqui formam uma linguagem, uma forma de se expressar diante do mundo. Mas o filme também é uma armadilha, e o processo do artista nele pode leva-lo para lugares diversos. Eryk Rocha sabe disso e no meio do caminho parece perceber que um dos caminhos possíveis para o seu filme é a ideia de autorretrato e que ela para se efetivar precisaria de incorporar métodos de Bruscky ao seu próprio trabalho. A impressão que fica é que o filme acha a sua linguagem a partir do artista e foi o processo de pesquisa do filme que levou à forma final.
Entretanto, todo filme tem a sua cena ou sequência especial. Em Bruscky: Um Autorretrato é a do mercado. Que cena. E ela me toca por questões para lá de particulares. Curiosamente, ocorreu um fato comigo pela manhã do dia que assisti ao filme. Andava pela rua com minha esposa indo para um compromisso e passamos em frente a um pé-sujo e lá havia uns homens conversando e bebendo. Até aí nada demais. Na volta, passamos novamente em frente ao mesmo pé-sujo e eis que os mesmos homens ainda estavam por lá e eu comentei com ela: "meu sonho de consumo é esse. Ficar horas sentado no bar, como se o tempo não existisse ou estivesse suspenso". Ela riu e ficou me olhando com a cara que expressava: "mas que sonho mais besta". Eis que quando estou assistindo ao filme de Eryk e lá está a sequência do bar no mercado público. Nela, a câmera está ali captando, querendo penetrar na alma de seu protagonista. E como ela alcança, viu? De repente, Paulo Bruscky faz amigos e começa a filosofar e temos a impressão de conhecer Paulo mais plenamente naquele instante, justamente na suspensão do tempo que só o bar consegue no mundo contemporâneo. Essa sequência é antológica e as pérolas são muitas. É um transbordar sem fim e o aparecimento do microfone no alto da tela evidencia que o mais importante em uma filmagem é a emoção do que é captado, do qual um suposto erro técnico vira um nada.
Mas o que seria de um filme sem um bom personagem? Paulo Bruscky é um personagem que se deixa emocionar, sem filtros e freios, e isso ecoa pelo filme, ou melhor, Eryk permite que isso aconteça, que o personagem seja capturado em sua essência, a tal fogueira que tanto ele quer manter para driblar a morte, mesmo com seus excessos, inclusive de cerveja. O melhor de tudo é que Eryk filma sem proselitismos, riscando o chão limpo com giz, e se permitindo ser irregular, mas verdadeiro em um filme que espelha essa relação entre dois artistas, um na frente das câmeras e outro por trás dela, este último ansioso por captar a verdade de um artista. Como diz Paulo Bruscky, a arte existe para que saibamos ver o mundo. Eu acrescentaria que ela tem o poder de reinventar o mundo, assim como Bruscky: Um Autorretrato o faz com grande êxito.
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