Texto por Marco Fialho
Não dá para começar esse texto falando de outra coisa, se não de Fernanda Montenegro. Se em Ainda Estou Aqui a nossa maior atriz precisou de poucas cenas e nenhuma palavra para impressionar o mundo com o seu grandioso talento, imagina agora em Vitória, novo filme de Andrucha Waddington, em que ela é inteiramente a protagonista, plena e majestosa? Fernandona chegou naquele ponto em que virou a própria definição da coisa. Quando está em cena ela define por si só, com o seu trabalho, o que é ser atriz.
Algo mágico acontece em Vitória e essa magia em parte é inerente à força cênica de Fernanda Montenegro. O filme é baseado na história real de Joana da Paz, que antes de morrer confidenciou que sonhava um dia ver Fernanda Montenegro interpretando a sua história no cinema. Por isso, algumas críticas endereçadas a Andrucha por ele ter escolhido uma atriz branca para o papel de uma mulher negra não cabe aqui, pois era o desejo maior da própria personagem real era ver Fernandona fazendo sua personagem cheia de coragem e determinação. Como não lembrar de Dora de Central do Brasil, outro tipo popular que a atriz agigantou e emocionou o Brasil e o mundo há mais de 20 anos atrás.
Mas Vitória se impõe por outros artifícios, por como Andrucha cria as relações da sua protagonista com outros personagens, como o do repórter policial Fábio Godoy (Alan Rocha), Marcinho (Tawan Lucas), a vizinha trans (Linn da Quebrada), que orbitam no cotidiano conturbado de Dona Nina, depois que o tráfico de drogas se instalou criminalmente na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana. A história se passa nos idos de 2005, antes das UPPs e quando os tiros de fuzis começaram a falar alto em várias regiões de um Rio de Janeiro governado por Rosinha Garotinho, antes de Cabralzinho.
Vitória foi um projeto iniciado por Breno Silveira (também um dos roteiristas do filme, que morreu durante o processo de filmagens) e concluído pelo sócio na produtora Conspiração Filmes Andrucha Waddington. Um dos acertos do filme é o de conhecer bem o terreno onde se está pisando ao situar o terror do tráfico como algo além da favela, como um fenômeno social que envolve altos escalões do poder público do Rio de Janeiro. O envolvimento da polícia militar está lá registrado, inclusive nos vídeos realizadas por Nina, essa senhora que decide enfrentar de peito aberto o crime organizado.
Mas quais são as estratégias narrativas e dramáticas escolhidas por Andrucha para o filme? A direção se utiliza de artifícios para acentuar a dramaticidade da história? Podemos dizer que sim, que há uma tendência de sublinhar o drama para aumentar o realismo das cenas, seja pelo uso abusivo do som, pela música ou até na exploração da interpretação de Fernanda no limite da dramaticidade. Para a nossa sorte, Fernandona sabe com a sua experiência caminhar no fio tênue dos tons a serem aplicados a cada cena específica.
Contudo, vale destacar como alguns detalhes e sutilezas também estão presentes na narrativa, e de certo conferem um maior equilíbrio dramático. Penso na vitrola de Dona Nina, sempre usada como um momento que adiciona emoções indiretamente à mise-en-scène, que faz o filme prescindir dos diálogos em algumas situações. Assim, surge um Nelson Cavaquinho ou um Milton Nascimento temperando poeticamente a cena e que se mistura a uma crueza cotidiana do contexto. Essas músicas também são formas de acrescentar algo à personalidade dessa mulher, de atribuir camadas a ela.
Outra situação aparentemente pequena e sem grande expressão, mas que faz Vitória crescer são as cenas da xícara. Muitos podem não enxergar o quanto essas cenas são cruciais para a edificação ou para o desenho da personagem. E os sentidos delas podem ser muitos. Ainda podemos somar a isso, objetos de cena determinantes à trama. A xícara japonesa em Vitória funciona como um elemento simbólico fundamental para essa mulher idosa que leva a vida como massoterapeuta. Esse simples objeto pode assinalar ou dizer sobre a fragilidade da situação dessa mulher naquele território, mas pode ainda ser um simbólico do seu corpo físico, que mesmo aparentemente inteiro, pode se quebrar de uma hora para outra, o que abre para pensarmos sobre a delicadeza da própria vida.
Mas Andrucha abre outras frentes e vai adiante com a xícara, quando coloca a personagem obstinada por tentar remonta-la com uma cola. Essas cenas não aparecem seguidas uma da outra, elas vão sendo lentamente costuradas no decorrer do filme. A xícara então passa a ser um processo em si, uma narrativa paralela que ganha luz própria, como um elemento narrativo auxiliar simbólico, uma relação entre passado, presente e futuro, sobre finitude, e mais ainda, de como encaramos o fim em nosso cotidiano, inclusive o fim dos vários ciclos que temos na vida. E como essas cenas me impulsionaram a ver um outro filme, para além da história de Nina/Vitória, de um recomeçar que soa como uma nova vida.
Vitória possui dentro de uma ideia simples de narrativa, ou melhor, dentro da sua narrativa até certo ponto careta um vigor inacreditável, ganha em uns pequenos detalhes, como na cena em que o menino Marcinho, destacado para matar Nina, resolve salva-la e ali deixa acesa uma importante faísca de esperança na humanidade. E o que dizer dessas duas mulheres exemplares que são Nina e Fernanda Montenegro. Personagem e atriz que se misturam em dignidade rara, de persistência no acreditar, uma na justiça e outra na arte, e ambas na vida. Vitória é um filme de grandes emoções e que vale pela força dramática impressa por uma atriz que é ícone da própria arte de representar.
Gostei do texto.
ResponderExcluirLeio seus ricos e belos textos, antes de ver o filme, e também depois.
ResponderExcluirTemi ver este filme, e até adiei, com receio de ser muito triste. Mas não me trouxe esse sentimento
(vi ontem, por causa da beleza de seu texto, principalmente).
Há muitas camadas, a maioria explícitas,
e com toda crueza.
Algumas, muito sutis, acordando a sensibilidade e reflexões tanto de cunho existenciais,
quanto à complexidade histórico/político/social.
Uma dessas camadas é o enquadramento da Fernanda, caminhando em direção à câmera.
O contraste entre a pessoa franzina e a imensidão (no caso, vazia, me parecendo lembrar que nada no seu entorno parecia feito para atender suas necessidades).
Nessa cena também há afinidades: duas imensidões - o talento da Fernanda, em toda a sua longa caminhada, e do cenário (quando ela admirando o imenso mar, achei sugerir o universo emocional da protagonista).
Que filmaço!💛