Texto por Marco Fialho
Sempre Garotas, dirigido pela diretora Shuchi Talati, trata de um dos temas mais comuns do cinema indiano: o da repressão sexual sobre as mulheres e o que o filme nos oferece é uma rara visão de uma mulher, o que de certo valoriza a abordagem e nos faz ficar mais atento ainda ao fato narrado.
As reflexões de Shuchi Talati partem da história de Mira (Preeti Panigrahi), uma jovem do ensino médio de um internato que se defronta com dois desafios gigantes: se manter como a melhor aluna da turma, sendo a monitora-chefe e lidar com a sexualidade cada vez mais se aflora fisicamente, que se acentua com a chegada de Sri (Kesav Binoy Kiron), um jovem disposto a conquista-la com firmes propósitos de sedução. Mas no meio do caminho de Mira tem Anila (Kani Kusruti), a mãe, uma jovem senhora carente, que também faz seus jogos de sedução com o jovem pretendente.
A partir dessa história que Shuchi Talati constrói momentos de permanente tensão entre os personagens, ainda mais que existe na escola um clima de hostilidade, sobretudo depois que Mira não demonstra interesse e despreza abertamente as investidas de um dos meninos da turma. Mas Sempre Garotas foca realmente nos conflitos internos de Mira, uma adolescente como qualquer outra, que se sente vir do corpo impulsos sexuais inerentes a sua idade. É surpreendente como mesmo com o pai ausente na maior parte do tempo, ele se torna uma sombra pesada sobre Mira.
Se o central na narrativa de Shuchi Talati é o processo de amadurecimento de Mira, ela o faz da maneira mais cruel possível, a fazendo experimentar o doce, e mais ainda o amargor e a hipocrisia que a sociedade indiana impõe às mulheres. A trama se desenha sem açodamento, daquelas que vai caminhando e entregando seus conflitos aos poucos. Os conflitos se intercalam, ora os escolares, ora os familiares e ora os sexuais e afetivos. Shuchi faz uma costura deles, pois afinal, na vida tudo vem misturado e a diretora incorpora isso a sua narrativa.
Tem umas sutilezas que Shuchi explora com eficiência, levando em conta que Mira é uma menina intelectualmente avançada, mas ainda bastante imatura nas experiências sexuais, do tipo que ainda treina beijos em seu próprio braço. Esse descompasso entre o intelectual e o sexual será determinante para as próprias frustrações que a história apontará mais à frente.
O mais curioso em Sempre Garotas é o quanto que a repressão sexual parte das mulheres mais velhas, responsáveis por manter os elos que aprisionarão as futuras mulheres. A mãe e a diretora da escola são as que diretamente praticam os atos mais proibitivos e de repressão. Já Sri está sempre livre para flertar com quem quiser, inclusive com Anila, ele mora longe dos pais, o que seria impensável para uma menina nesse contexto social. Mas o filme mostra bem como a vigilância e a punição são as molas mestras da Índia e olha que estamos falando dos dias de hoje. Mira mesmo, é cobrada como monitora-chefe a reproduzir esse modelo de cobranças e de moral, só que há os inevitáveis retornos de hostilidade e de vingança inerentes a esse tipo de organização que preza pela repressão.
O que mais me interessou em Sempre Garotas foi a maneira como Shuchi deixa subtendido fatos, deixando sempre margem para dúvidas, embora alguns indícios sejam bem evidentes, como a diretora constrói a relação entre Sri e Anila, por exemplo. O nosso ponto de vista é sempre o de Mira e ficamos sabendo sobre o desenrolar da história pelo seu olhar. As dúvidas delas serão as nossas. Shuchi faz dos espectadores cúmplices visuais de Mira. A construção que a atriz Preeti Panigrahi realiza de Mira é muito delicada e sua interpretação está posta nos detalhes, nas roupas, olhares e como ela toca cada objeto ou corpo. A fotografia é precisa ao salientar as sombras de uma sociedade que se edifica por uma ideia de falsidade, de que nada está às claras. Há uma violência nesse teatro social que impõe vigorosas rédeas morais às mulheres.
Nesse panorama social, a personagem de Mira tem uma beleza ora selvagem ora contida, como se carregasse o peso da sociedade e um vulcão interior prestes a explodir. Esse é o tempero que Shuchi Talati salpica em Sempre Garotas, um misto de pensamentos picantes com atitudes sociais que esperam de cada um. O filme tem um realismo que surpreende por ser tão cruel com o prazer e nem tudo está às claras, o escondido é o que predomina e que faz cada personagem tomar atitudes imprevisíveis.
As contradições da sociedade retratada em Sempre Garotas está presente também na forma como Shuchi trata a câmera de seu filme. Ela oscila planos fixos com outros onde a câmera está solta a flagrar momentos em que os corpos aspiram a liberdade de movimento. Os corpos igualmente oscilam entre serem mais flexíveis e duros. Os prazeres são sempre interrompidos ou fugazes, a prisão dos corpos é notória e se faz presente, como se fora inevitável. Na Índia, as mulheres vivem aprisionadas e Shuchi Talati filma isso por meio da vida cotidiana de Mira e sua família.
Mas entre os diversos conflitos que a trama aborda, a diretora prefere finalizar seu filme com uma cena poética e delicada, de franca sororidade entre mãe e filha, talvez para deixar evidente que independente do que tenha ocorrido entre as duas anteriormente, ambas são massacradas pela mesma sociedade machista que tanto historicamente quanto no presente impede as mulheres de manifestarem livremente seus desejos, afinal, como bem diz o ótimo título original, garotas continuam sendo garotas. E na Índia, a dose parece ser bem indigesta.
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