Texto por Marco Fialho
Uma das sensações mais gostosas de sentir é a de estar em um carro, rumo a uma praia e ouvir a canção Vamos Fugir, de Gilberto Gil. Quem nunca experimentou, deveria um dia viver essa satisfação incontida. O lançamento dessa canção data de 1984 quando eu tinha 19 anos e ela marca o auge da minha adolescência e juventude, em que ir de carro à Praia da Reserva na Barra da Tijuca para curtir uma praia praticamente deserta era uma delícia, ainda mais dirigindo o meu Gol 1983, uma versão a álcool, que para ligar pela manhã cedinho tinha que puxar o afogador de gasolina e ficar insistindo até o motor resolver responder.
Mas fora as lembranças de uma época hoje pra lá de remota, nos estertores da ditadura militar, sinto que algo de Vamos Fugir incrostou em mim, como um simbólico de liberdade. Entretanto, o mais interessante é que essa canção para mim significa algo maior, um tipo de hino para quem sonha se libertar do horror que se transformou o mundo. Será que a magia de ter a banda de Bob Marley e a presença do seu filho Ziggy na gravação possibilitou que essa canção fosse mais do que uma música um exercício de levitação? Ela me tira o chão, me faz flutuar e viajar para um lugar, ou seria um não-lugar. Não sei, só sei que com ela eu vou longe em meus pensamentos e sentimentos.
Para mim, com o tempo, a canção angariou um algo a mais, se mostrou capaz de ser possuidora, ou até mais, se mostra inspiradora de um desejo de libertação de tudo que nos oprime em nossos cotidianos. Isso porque ela é uma canção convite, que nos chama fundamentalmente para viver o hoje e o urgente, que não aceita as amarras ditadas pela sociedade. Tudo é tão direto que provoca de imediato numa transposição espacial. A letra do início da canção é uma evocação:
"Vamos fugir, deste lugar, baby!
Vamos fugir
Tô cansado de esperar
Que você me carregue
Vamos fugir
Pra outro lugar, baby!
Vamos fugir
Pra onde quer que você vá
Que você me carregue".
Lembro o quanto da minha infância guardo resquícios de uma outra forma de viver, de como as crianças possuíam mais tempo para brincar e explorar o mundo. Hoje tal como os adultos as crianças não tem mais esse tempo, elas acordam vão para a escola, depois para o inglês, o balé, o judô, a piscina e o que for, seu dia precisa estar tomado por ocupações. Eu lembro o quanto eu tinha um tempo livre, que se podia ouvir música, jogar bola ou simplesmente não se fazer absolutamente nada. Só no fazer nada se pode se inspirar a liberdade ou se ter o espírito livre. Como o tempo anda cada vez mais domesticado pelo trabalho e outros afazeres não se tem mais o tempo de sonhar e como ele faz falta para se ter um mundo melhor.
Realizo uma reflexão sobre a questão do tempo porque foi justamente durante um momento em que voltava de um período sabático que ouvi pela milésima vez Vamos Fugir. Fiquei a pensar como Gil foi feliz em conectar uma melodia, uma letra e um ritmo de maneira tão orgânica, em que as três coisas parecem uma só coisa e faz parecer que tudo nasceu junto e de uma só vez. Como a música é uma parceria com o músico e produtor Liminha, acredito que não houve essa simultaneidade que a canção nos faz imaginar, mas não importa, pois o que vale é a sensação de que ela veio pronta do céu e caiu na Terra tal como um raio, sem aviso e nos dando um enorme susto. Inclusive, a canção fala bastante de céu, de sol, desses elementos que nos remetem ao infinito e ao inalcançável.
Em se falando de inalcançável, Gil compôs uma letra que ele mescla a sensação de algo impossível ou distante com coisas corriqueiras, tal como se a felicidade estivesse em um ato de regar uma flor pela manhã ou de comer uma maça, ou simplesmente, admirasse a beleza das coisas que a vida oferece a cada novo dia que nasce. A canção também fala da magia do encontro de dois corpos nus se amando. O compositor discorre ainda sobre o infinito ou de coisas mais difíceis de se esbarrar por aí, como a citação a um escorrega ou a uma banda de reggae, o que lança a canção para uma atmosfera lúdica e radiosa. Prezado Gil, falemos a verdade e falemos com o coração: queremos exatamente esse mundo que cantas, queremos penetrar nesse mundo que a canção inventa, queremos o sublime que ela mais do que exaltar, diz existir. Fiquei pensando em 1984, em memórias inescrutáveis. Sabe que naquela época eu acreditava que eu fugiria para esse mundo e que viveria essa utopia? Essa é a luz que essa canção me traz sempre que a ouço.
Vinte anos depois, o Skank regravou a música e ela novamente foi aquele sucesso arrebatador. Em um primeiro momento, me soou como uma renovação contratual da minha esperança. Porém, eu já estava mais maduro do que antes e me bateu uma rebordosa, uma ressaca de que aquela utopia só dependeria da minha coragem de romper com tudo e ganhar aquele mundo inatingível da canção. Hoje, mais maduro ainda, prestes a completar 60 anos, sei que ela é apenas uma fonte de inspiração, uma meta que imponho a mim mesmo, de alcançar um mundo delirante e inoculado pela leveza, e sinto que tenho que realizá-la antes de partir desse mundo e que isso depende de uma decisão fundamentalmente minha.
A urgência agora é outra e mais profunda. Hoje o mundo é mais distópico do que o de antes. Tivemos um governo fascistóide, que zombou publicamente de milhares de pessoas mortas, que espalhou uma semente podre sustentada por mentiras. A impressão é que o fedor dos DOI-CODI de antes se proliferou e ampliou pelo mundo. Mas não quero transformar a esperança em dor, Vamos Fugir não merece ser manchada por todo esse lixo. Não! Não, mesmo! Ela sempre será a vitória da leveza sobre a dureza da vida e a minha guardiã de um mundo melhor, um hino evidente de que a vida presta. Esse mundo existe sim, está lá na canção e dura exatos 4 minutos e 50 segundos, mas para mim será sempre infinito, eterno e vivo.
Que belíssima crônica!
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