Texto por Marco Fialho
Antes de começar a falar de Milton Bituca Nascimento, documentário dirigido por Flávia Moraes, preciso declarar meu total comprometimento com o tema Milton Nascimento. Inclusive, confesso que aprendi a gostar do mundo ouvindo Milton Nascimento. Ele foi o meu griot ao cantar histórias do meu povo, em especial dos negros e me contou das injustiças, mas também das belezas que econtrou nas andanças que fez pelo nosso país. Hoje viajo para encontrar as suas canções, subo ladeiras e dobro esquinas na esperança de encontrar pessoas que ele tanto falou. Todas, sempre, ficaram em mim, e nas paisagens que tantas vezes visitei com suas músicas. O que seria de todos nós sem os sonhos que Milton tanto evocou nas suas obras. Escrevi, em 2023, uma crônica sobre Milton e o Clube da Esquina, que pode ser lida no link abaixo:
Por esses fatores acima mencionados, a expectativa para assistir Milton Bituca Nascimento era altíssima, mas o documentário infelizmente fica muito aquém de Milton, do seu talento, da carreira, da poesia e tudo o mais. Falta uma diretriz precisa, um foco. É o acompanhamento do show de encerramento? É o reconhecimento internacional? É o Milton brasileiro? O enigmático e inclassificável compositor? Ao tentar dar conta de tantos Miltons, o filme fica pelo caminho, disperso, reservado apenas a uns poucos bons momentos, quando se tinha em mãos, simplesmente, o maior dos maiores cantores do mundo, um compositor original e uma pessoa extraordinária que poderia dizer tanto sobre si e a música.
Outro trunfo: a diretora Flávia Moraes tem Fernanda Montenegro, sim, a maior atriz brasileira, uma diva inconteste, para fazer a narração. Mas será isso o bastante, algo que por si só salvará a narrativa do documentário? Fernandona executa o trabalho com a magnitude de sempre? Sim, com certeza, porém o documentário se fragiliza por uma montagem desastrosa (a palavra parece pesada, mas infelizmente é precisa) e caótica. Dentre tantos equívocos, tem a incorporação do famoso reverber de Milton utilizado nas gravações de estúdio, mas ela é realizada de maneira atabalhoada, atrapalhando os depoimentos, os confundindo. Fora que esses depoimentos são sempre muitos entrecortados, rápidos e curtos, o que faz parecer que as ideias estão sempre pela metade, incompletas. Até o próprio Milton Nascimento é cortado no meio de seus depoimentos fundamentais quando está a discorrer sobre o seu processo artístico, o que nos deixa sempre frustrados com o resultado, com a sensação de que falta algo. A inclusão de uma pequena parte ficcional dele criança também fica solta, fica restrita a um momento de sua vida, além de soar artificial e não acrescentar muito ao todo.
E o que dizer dos diversos depoimentos que vão brotando, como se o majestoso Milton Nascimento precisasse ser referendado por qualquer artista brasileiro ou mundial. E a longa discussão sobre o jazz na música de Milton, ou o fato de músicos de jazz grava-lo com insistência que não aprofunda seu processo de criação e pouco acrescenta, porque como diz o guitarrista Pat Metheny, o que Milton faz é música, muito além dos rótulos e ritmos existentes. E o que poderia ser mais elucidativo do que ouvir a própria música mágica de Milton e que ouvimos tão pouco e sempre por momentos curtos, que não dão tempo para adentrarmos nela, nos seus mistérios maravilhosos? Se Milton traz consigo o mistério em si da beleza musical, deixa então o som dele entoar para que esse enigma apareça, sem interferências ou explicações dadas por uma voz externa irritante. Desvendar Milton é deixa-lo dizer e cantar, simples assim. Ouvir parceiros cai bem, mas apenas admiradores, por mais famosos que sejam, já não é tão necessário assim.
A obsessão por tentar traduzir o intraduzível, e perde-se muito tempo nisso, o documentário de Flávia Moraes vai perdendo força, e isso diante de um músico e cantor que possui uma pungência que não precisa ser referendado por outros, apenas ser ouvido pela música que produziu. O que não se entende é porque não ouvir o gênio, e sim uma polifonia de vozes que só ficam tentando explicar o fenômeno, enquanto ele está ali, vivo, podendo ser explorado. O que mais senti falta nas quase duas horas de duração de Milton Bituca Nascimento foi dele próprio, de ver e sentir a música pelos seus olhos e pensamentos. De que adianta saber o que Quincy Jones, Esperanza Spalding, Herbie Hancock, Stanley Jordan e outros artistas incríveis, que aqui soam inúteis, pois afinal, Milton está entre nós e o que queremos é ele e nada mais. E mais, não precisamos deles para dizer quem é Milton, nem o quanto é importante para a música e basta ouvi-lo para se ter certeza disso.
A verdade é quem nem a narração perfeita de Fernanda Montenegro cai bem no documentário, não por ela especificamente e como é difícil admitir isso, mas porque Milton Nascimento não precisa de uma voz a mais nem de ninguém dizendo quem ele é. Inclusive, essa narração só vai explicando, ou tentando explicar, um mundo musical mágico eivado de incógnitas maravilhosas que pouco importa traduzir. A música de Milton Nascimento sempre foi para ser sentida, muito mais do que para ser racionalizada. Milton é um vulcão em erupção, capaz de incorporar as mais diversas formas de músicas produzidas mundo afora, basta ouvir para saber e sentir isso.
Não por acaso, os melhores momentos do documentário é quando os músicos que sempre tocaram com ele e se manifestam os processos utilizados por Milton Nascimento nos estúdios e shows que fez durante a carreira. Ouvir Toninho Horta, Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, acaba por mostrar mais a essencial musical de Milton do que artistas que só vieram conhecê-lo posteriormente, apenas pelas gravações. Uma pena Flávia Moraes dedicar pouco espaço para os músicos e compositores brasileiros que atuaram com ele. Melhor do que ouvir Chico, Caetano, Gil, João Bosco, Criolo, Mano Brown e outros como referendo da obra genial de Milton, o filme ganharia mais com os músicos ausentes, como Novelli e Robertinho Silva, entre outros que juntos com ele fizeram uma música de imensa capacidade de nos tocar no fundo da alma.
Ao não trazer a música de Milton Nascimento como protagonista de Milton Bituca Nascimento, o filme se enfraquece por si só e sequer consegue extrair momentos significativos de emoção. As músicas surgem em pequenos trechos e essa falta de imersão na experiência musical do artista causa um malefício para a própria narrativa do documentário. Fiquei pasmo de ver a quantidade de imagens de Milton como turista nos países estrangeiros ao invés de termos imagens e depoimentos sobre o processo do show de despedida. Se perde a oportunidade de ver Milton nos bastidores, pensando o espetáculo final. Faltou ainda uma pesquisa de arquivo mais ampla, que desse conta das fases mais significativas, em especial a dos anos 1970, quando experimentou o ápice de sua música, com álbuns geniais, como Minas (1975), Geraes (1976), Milton (1970), Milagres dos Peixes (1974), Clube da Esquina 1 (1972) e Clube da Esquina 2 (1978), vindo fazer ainda Sentinela (1980), que fecharia um ciclo absolutamente genial e único.
Milton Bituca Nascimento deixa um gosto um pouco amargo nos fãs, naqueles que acompanham a carreira do cantor/compositor, de que o seu artista preferido não esteve pleno ao final da projeção. A tarefa, porém, não era das mais fáceis realmente. A força dessa voz é inexaurível e de poder ilimitado. Como trazer essa força, esse cosmo sem deixar algo para trás é o eterno desafio para que quer abarca-lo em um filme. Será que era preciso uma narração para dizer o que representa esse talento para os nossos ouvidos? Talvez seria melhor subtrair tantas vozes (inclusive a de Fernanda Montenegro) para inserir a única que realmente importa, a do próprio Milton.
Sua crítica dá conta da problemática do filme. Você toca em pontos precisos, de forma cirúrgica, e joga luz sobre questões que, mais do que procurar dar conta do genial artista que é Milton Nascimento, subtraem sua grandiosidade, e destacam tudo aquilo que é irrelevante. Depoimentos sem fim, imagens de suas últimas apresentações internacionais, tudo isso é enfadonho. Milton, ao final, parece ser mais um convidado de seu próprio filme e não o protagonista de sua vida exuberante.
ResponderExcluir