Texto por Marco Fialho
Cao Guimarães é um dos realizadores brasileiros mais coerentes e consistentes que temos hoje em atividade. O seu cinema é criativo, destemido e idiossincrático. Amizade, seu mais recente trabalho é tomado por uma atmosfera poética e de indagações filosóficas, muito devido ao caos que invadiu a vida do planeta a partir das pandemia do Coronavírus e que colocou a vida na iminência repentina do seu fim, provocando reflexões sobre as nossas formas de viver e estar no mundo. Amizade soa como uma autorreinvenção da vida por meio do cinema.
Interessante como Cao fica motivado em pensar a amizade como elemento central, não que se almeje fazer um inventário do tema, muito pelo contrário, o que ele quer é poetizar o tema, com uma narração em off que joga ideias aparentemente soltas e aleatórias enquanto vemos imagens que encantam por um viés impressionista, que não se compraz em ser descritiva, e sim que funcionam como camadas interrogativas, vivas e regadas na inteligência sempre afiada do cineasta.
Amizade não deixa de ser uma obra intuitiva, de fluxo e com uma energia que vai sendo criada na montagem, esta a cargo do próprio Cao. Cao inclusive é também personagem, ou seria o detonador de questões, quem centraliza tudo, afinal, a tal amizade do título passa por sua turma do cinema, com quem produz e dialoga sistematicamente sobre cinema. É por isso ainda, de alguma forma, um documentário sobre o seu processo de produção, de como a amizade influi nisso no que é a sua obra, tanto que várias das imagens vem dos seus filmes anteriores e igualmente o próprio filme que estão fazendo, tanto que a primeira imagem é deles na moviola pondo o filme para discussão.
O tema da amizade é vinculada ao próprio caminho do cineasta e as relações que travou pela estrada da vida e do cinema. Cao é conhecido por ser um cineasta chegado à estrada, de registrar o movimento das coisas e das pessoas, e isso em um sentido o mais amplo possível. Curioso nesse filme Cao ser ele mesmo o andarilho, depois de fazer tanto isso na carreira. Cao registra a mudança dele para Montevideo feita em 2016, junto com Beto Magalhães, seu produtor e um grande amigo da vida. Se antes, Cao fez um filme sobre a espera, agora ele sublinha a poética de um deslocamento.
Não casualmente, Amizade é muito sobre afeto e admiração, uma ode à diferença e a complementariedade que uma amizade promove com sua presença. A câmera dele parece obsessiva por captar a visão dessa alteridade que uma amizade oferece. Há um prazer revigorante de ver como o amigo curte uma música e isso é uma maneira de exercer a amizade, de subtrair dela um sentido para a nossa vida. Sem o olhar do outro a vida seria sem graça e tediosa, pois só teríamos a nossa própria visão das coisas.
O intrigante e cativante no cinema de Cao Guimarães é que ele jamais cai no banal ou no vazio, mesmo que o vazio e o banal sejam elementos presentes nas obras dele. Imagens e sons são poderosamente fascinantes e aqui ele se cerca do grupo O Grivo, um dos mais expressivos artistas brasileiros do som, que aqui cria uma atmosfera lúdica, por vezes quase sobrenatural. Cao viaja, mas é notório que o Brasil vai com ele, mesmo que seja cercado pelas incertezas de um futuro que se desenhava o mais tenebroso possível, um país do Golpe de Estado de 2016, e que em breve, elegeria a escória política para governar o país. Em paralelo à narrativa vamos acompanhando esses momentos de desesperança de Cao, que não deixa de ser um simbólico de tudo que ocorreu com os artistas nos anos que se seguiriam.
Cao, mesmo fora do país, não abriu mão dos amigos e inunda a tela com imagens arquivadas que levou consigo. Essa revisita ao passado nos é ofertada pelo diretor, que preserva as texturas diferentes advindas dos diversos formatos de registro. "O tempo da memória é diferente do tempo fora da memória, mais quebradiço, mais fragmentado. Eu fico pensando onde é o fora da memória? Hoje, agora, amanhã, depois, estão fora da memória, pelo menos por enquanto." Essas são as reflexões filosóficas que Cao taca em nosso peito. Afinal, tempo e memória são matérias primas do documentarista, são elas que o move pelo mundo.
O tipo de documentário que Cao realiza parte sempre da delicadeza que ele partilha com o mundo. O olhar generoso frente à vida. As várias perguntas sem respostas e as variadas janelas que se abrem à nossa frente e tantas outras que se fecham. Tudo isso cabe no cinema imprevisível que jamais conseguimos supor qual será a próxima imagem. Esse cinema do enigma e que leva em consideração as lacunas, que precisa de nós para preenchê-lo com nossas vozes e sensibilidades, no mesmo modelo de amizade que ele propõe em seu filme, pontuado por trocas de sentimentos e conhecimentos. Amizade é para sentir e viajar junto. É um tipo de dispositivo que parte de si para se expandir no outro, para servi-lo em forma de sonho e em busca do indizível. Como a vida, nem tudo está dito ou mesmo dado. Há sempre algo lacunas, porque a falta é algo partilhado e cabe a cada um de nós resolver o que fazer com ela. Apesar de muita coisa estar disponível, não cabe ao filme a decisão de dizer o que fazer com as palavras, e menos ainda com as imagens.
O cinema de Cao é fundamentalmente o do encontro. Tanto o dele com amigos quanto nosso com os enigmas de suas imagens e sons. Cinema para Cao é o veio da aprendizagem pela alteridade, é conhecer-se pelo contato com o outro, pela observação dos seres humanos, animais e vegetais. É aprender com tudo que nos cerca. O cinema dele carrega essa totalidade, de deixar tudo passar e escorrer pela tela, de se amparar na vida em toda a sua complexidade, inclusive na performatividade da arte, do som e da natureza. É na multiplicidade de sua materialidade fílmica que nos interrogamos, nas pegadas oníricas e nos rastros de memória que o cinema de Cao Guimarães deixa ao final de sua projeção. Como ele diz, somos pescadores no acaso da vida à espera que um peixe qualquer morda a isca. Que metáfora tanto para a vida quanto para a amizade poderia ser mais propícia do que esta?
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