Texto por Marco Fialho
François Ozon é um diretor que tem um certo prazer em desvelar os mecanismos de ilusão inerente tanto à sociedade quanto à humanidade. Faz os espectadores verem o mundo por ângulos inusitados ou até mesmo inesperados. Quando Chega o Outono não deixa de ser mais uma obra em que o humor, aqui com boa dose de perfídia, está integrado à narrativa, onde o interior da França esconde mistérios que a grande Paris sequer desconfia.
O mais curioso neste filme é como François Ozon debocha do estereótipo da idosa carinhosa e bondosa e faz dos cogumelos algo simbólico na história. Da mesma forma que precisamos conhecer os cogumelos para identificar sua letalidade, o mesmo mecanismo pode ser utilizado para analisarmos os seres humanos. Como identificar os letais? Às vezes, as aparências podem enganar e em Quando Chega o Outono não deixa de ser uma fábula sarcástica sobre o mundo das aparências, de como o parecer pode ser insuficiente.
Ozon gosta dessa brincadeira na qual o cinema é exemplar, de mexer com os sentidos, de enganar o espectador, de criar uma ilusão à percepção humana, de mostrar como não temos o controle do todo e quanto a maldade humana pode ser dissimulada. Deve ser notado o quanto o diretor organiza sua obra, nos fazendo afeiçoar pela personagem Michelle (Hélène Vincent), uma mulher idosa que na superfície ama a sua família. O movimento que Ozon faz é o da desconstrução dessa mulher. Mas tudo é feito de maneira lenta, aos poucos vamos descobrindo dados e elementos que conformam a personalidade e a vida de Michelle.
Quando Chega o Outono continua o estudo que François Ozon vem realizando no decorrer da carreira dos métodos hitchcockianos. Nessa obra, a influência está mais diluída, mas também presente. Ozon gosta da manipulação que o cinema é capaz de construir e a possibilidade de reconstruir o mundo ao seu bel-prazer. Ozon transforma seu filme em um jogo. É Michelle manipulando os personagens ou Ozon mostrando a complexidade que nem sempre está disponível em um primeiro olhar, quase sempre voltado para o que vemos na superfície da vida. Aqui, Ozon desfolha as camadas dos personagens, revela o quanto é complexo realmente saber a verdade sobre as coisas que envolvem a história de cada indivíduo e esse é o brilhantismo do filme.
Quem é realmente Michelle? Apenas uma idosa bondosa com o neto ou uma pessoa repleta de ardis para sobreviver em um mundo que já a castigou por demais? As coisas nunca são apenas algo único e Ozon faz questão de revelar camadas e mais camadas, tanto dos personagens quanto da própria história. Do personagem Vincent (Pierre Lottin), pouco nos é informado, o que sabemos é que ele passou pela prisão, embora o motivo não seja mencionado, apenas o óbvio, que fez algo de errado socialmente. A sua mãe, Marie-Claude (Josiane Balasko), trabalhou com Michelle na juventude, ambas como prostitutas. A maneira como Ozon usa esse momento da vida pregressa de ambas para o desenvolvimento da trama é exemplar e determinante para tudo o que vai ocorrer, inclusive os fatos macabros que o filme encampa.
Paulatinamente, Ozon entrega os segredos de Michelle, as artimanhas, os planos mais bizarros que nós espectadores vamos conhecendo por meio de planos cinematográficos muitas vezes cômicos. Sim, Ozon manipula suas cordas para que o público ria de situações e assassinatos inimagináveis. Ao rir da tragédia, imediatamente nos censuramos. Como assim, estou a rir de um assassinato? Ozon, na verdade, deseja desconstruir os nossos olhares pudicos e moralistas sobre as instituições mais basilares, sobretudo a da família.
Quando Chega o Outono esboça um olhar cáustico e desconcertante sobre uma pessoa aparentemente indefesa pela idade avançada e ainda nos faz rir de situações inusitadas. O mundo pelo olhar de François Ozon mais do que complexo é um convite às entranhas de um mundo próximo que beira o irreal. Mas um filme é só uma mera ficção? Uma distração jocosa e sem pretensões filosóficas? Creio que Ozon passeia deliciosamente por essas frestas narrativas de maneira insuspeita, se ocultando em meio à fábula onde tudo pode acontecer e ninguém será punido de verdade. Em Ozon, o jogo do cinema é mais poderoso do que a realidade. Os cogumelos que o digam.
Maravilha! Obrigada por traduzir com.suas palavras aquilo que apenas suspeitei. O filme tem a marca registrada de Ozon e é bastante correto como proposta. Pode parecer pouco, mas é uma dádiva, especialmente em tempos como os atuais, em que roteiristas e diretores parecem querer testar nossa paciência.
ResponderExcluir