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O REFORMATÓRIO NICKEL (2024) Dir. RaMell Ross


Texto por Marco Fialho

O Reformatório Nickel, dirigido por RaMell Ross, é antes de tudo um filme de reparação histórica. Há nele uma força narrativa de grande intensidade. O cinema negro dos Estados Unidos vem sendo uma fonte importante para a reconstrução histórica do país ao resgatar fatos que foram soterrados por uma elite branca, aristocrática e racista.

Contudo, analisar O Reformatório Nickel apenas por um viés político (não que essa perspectiva não seja relevante) não dá conta de sua proposta corajosa e inventiva. A direção de RaMell Ross se revela crucial pelo traço impressionista que consegue imprimir na edificação de uma narrativa calcada na subjetividade de dois personagens negros: Elwood (Ethan Herisse) e Turner (Brandon Wilson), ambos internados no tenebroso reformatório situado na Flórida. 

A subjetividade é implementada pela direção de RaMell Ross, em especial pelo uso da câmera, quase sempre posta sob o prisma de Elwood ou de Turner, o que volta e meia provoca planos inclinados, desfocados e imprecisos. Essa câmera é engenhosa por um duplo efeito: o primeiro, em vermos os personagens sempre pelo olhar do outro, e o segundo, por transformar os personagens quase sempre em fantasmas, já que eles estão subtraídos parcialmente das cenas. Mas o diretor também mostra criatividade na ideia de montagem, nem sempre mantendo a ideia de linearidade, além de preferir sequências curtas, muitas vezes assemelhadas à memória humana por serem por demais recortadas e parciais. Assim, o filme caminha por cenas bem sintéticas que convidam continuamente os espectadores a estarem atentos tanto aos pequenos detalhes quanto ao seu desenvolvimento da trama.

A história da luta pelos direitos civis dos negros dos Estados Unidos está fortemente inserida no enredo do filme, seja pelas imagens de arquivo da saga de Martin Luther King, Henry Belafonte e Sidney Poitier ou pela aparição em dois momentos do filme Acorrentados (1958), de Stanley Kramer, onde dois prisioneiros, um branco (Tony Curtis) e um negro (justamente esse interpretado por Sidney Poitier, um baluarte do cinema negro dos Estados Unidos), fogem da prisão acorrentados e um deles (o branco, lógico) precisa lidar com o seu racismo na luta pela liberdade. Essa analogia com Acorrentados casa bem com o filme, em especial essa ideia de prisão e de desejo de libertação que ambos carregam, mesmo que na execução falte um melhor ajuste na conversa entre os dois filmes.  

Reparem como estamos, até aqui, elencando elementos diversos que estão presentes na feitura de O Reformatório Nickel. São eles narrativos, sociais, históricos, de montagem e de pontos de vista. Creio que esse conjunto analítico por si só é suficiente para mostrar o quanto complexo é esse filme, e de certa maneira o quanto ele assumiu riscos no seu processo de produção. Vivemos comentando que o mercado cinematográfico dos Estados Unidos anda carente de roteiros (mesmos os adaptados como esse) de criatividade na realização, o que nos leva a sublinhar iniciativas que se esforçam em pensar formatações pouco usuais, mesmo que não subvertam o espectro do filme narrativo. É possível sim, a obra ser narrativa e criativa ao mesmo tempo e se fossemos listar, teríamos fartos exemplos, ainda mais que a temática dos direitos civis é uma que já foi bem explorada pelos cineastas.

Um dos grandes méritos de O Reformatório Nickel é ser baseado no livro Nickel Boys, de Colson Whitehead, de escrever uma ficção a partir de uma experiência real, de uma instituição teoricamente correcional, que não prática violentou jovens negros de diversas maneiras, seja pelo uso da violência física, do estupro, do terror psicológico e do assassinato. O filme de RaMell Ross sabe transformar em imagens e sons (inclusive o aspecto sonoro da obra é magistral por não optar pelo estridente, mas sim por um som mínimo e angustiante) salientando a visão funesta e racista com muita sensibilidade. 

O Reformatório Nickel é composto por diversos recortes narrativos, e em muitos deles, somos convidados a conhecer a imensa capacidade intelectual de Elwood, um menino voraz por leitura e consciente da necessidade da luta pelos direitos civis tal como defendia Luther King. Em paralelo, tem-se a personagem Hattie (Aunjanue Ellis-Taylor numa interpretação cativante e de grande força dramática), avó de Elwood, que é estupenda, daquelas mulheres que criam filhos, netos e jamais desiste de sua família. Mas ainda tem, em meio ao caos de um reformatório, o nascimento de uma amizade sólida entre os afro-americanos Elwood e Turner, coroada por um final arrebatador onde a ideia de duplo ressoa com muita beleza. 

O Reformatório Nickel, incompreensivelmente, é o único dos 10 filmes concorrentes ao Oscar de Melhor Filme que não teve estreia no Brasil antes da cerimônia de premiação. Uma pena, por ser um dos mais interessantes e relevantes entre os indicados. É um filme impecável? Não é mesmo, mas não importa, pois afinal, para que serve a perfeição? É importante lembrar, que não é fácil abordar uma temática recorrente e conseguir extrair dela elementos e pontos de vista originais, se utilizando de recursos cinematográficos criativos que nos fazem pensar melhor acerca do absurdo histórico do racismo no país que se nomeia como o mais democrático do mundo. O filme me conectou de imediato com o assassinato de George Floyd por um agente policial durante a pandemia do Corona Vírus, fato que repercutiu muito além do território dos Estados Unidos. Sim, porque o Estado é um promotor histórico da violência e a existência do Reformatório Nickel é tão chocante quanto os porões da ditadura retratado por Ainda Estou Aqui.                  

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