Texto por Marco Fialho
É bonito como Bodanzky (diretor do extraordinário e lendário Iracema - Uma Transa Amazônica, de 1975) trata As Cores e Amores de Lore como algo tão próximo, afetivo e quase familiar. O diretor explicita os meandros da construção do filme, se coloca como narrador, embora assuma ainda uma polifonia ao conferir várias vozes à sua obra. Nela vemos além de sua voz, a voz da própria Lore e a de Carlos, um homem apaixonado de outrora que trocou missivas durante toda a vida com a artista visual. A ideia de Bodanzky partiu da relação que Lore estabeleceu com Rosa Bodanzky, sua mãe, por isso não deixa de ser um filme em homenagem a ela, pois algumas lembranças de Lore (abreviação de Eleonore Koch) esbarram na memória materna e cinema feito assim, costuma deixar marcas indeléveis.
A delicadeza de Bodanzky está na narrativa e na própria maneira pela qual o diretor vai dialogando com Lore no decorrer de algumas conversas que travaram durante 5 anos com a artista. Mas o filme não é marcado apenas pelas vozes, mas igualmente pelas imagens dos quadros e fotografias que Lore guardou minuciosamente vida afora. E o que dizer dos momentos valiosos em que o diretor sabe aproveitar do silêncio reflexivo de Lore, que muitas vezes se pega pensando sobre os caminhos originais e diferentes que trilhou em sua vida. Provavelmente, esse será um filme daqueles com um público reduzido, com poucas chances mercadológicas, talvez nem mesmo boa parte dos críticos o verão. Uma pena, pois somente alguns sortudos o guardarão em um lugar especial em suas memórias.
As cartas utilizadas fartamente pelo diretor cria um clima confessional fascinante, um mergulho precioso e terno no passado de Lore, um resquício de uma vida transbordante que passou pela Terra e deixou suas marcas e pegadas pelo caminho. Bodanzky abusa disso, filma as cartas, a maioria escritas em antigas máquinas de escrever, o que mostra o quanto o mundo mudou em tão pouco tempo. Por isso comparo As Cores e Amores de Lore a uma espécie de baú que se abre para descobertas fascinantes de um mundo que se abre novamente para nós, como um portal do tempo. É um cinema que trabalha diretamente com o tempo, que o traz para o presente para despertar novos sentidos e sentimentos.
Bodanzky sabe dosar as incríveis histórias de vida de Lore com o seu trabalho como artista, inclusive para mostrar o quanto ambos se entrecruzaram de maneira decisiva. Aos poucos a pungência da obra de Lore se descortina. O que parecia simples se revela algo maior e expressivo, tal a coerência com que essa obra artística visual se constrói durante os anos. Mérito para a bela montagem de Bruna Callegari (que também assina o ótimo roteiro e a produção), em costurar um material farto, e portanto difícil de recortar, sabendo introduzir as imagens de obras e fotografias com muita coerência.
Mas Lore tinha suas convicções, e dentre delas, a da negação do casamento como possibilidade de vida para ela. Prezou a independência como uma diretriz fundamental para a sua condição de artista, sabia o quanto ser mulher e decidir por não casar a alijaria da convivência de quem tinha essa instituição como basilar do ato de ser feminino.
Lore assume, sem maiores óbices, os diversos casos amorosos que teve em sua trajetória de vida. A vida de solteira a arremessou na pluralidade de amantes e viveu isso sem medo e empecilhos. Mas para quem admira cinema,, não passa desapercebido a relação com Paulo Emílio Salles Gomes, nossa maior expressão dentro da crítica brasileira, as afinidades com filmes com Hiroshima Moun Amour (1959), de Alain Resnais, que curiosamente fala de uma relação fugidia e intensa entre uma francesa e um japonês.
O olhar de Bodanzky para Lore não desvia do aprofundamento estilístico da artista, desde a influência do mestre Alfredo Volpi, com sua visão geométrica e simples do mundo. Muitos a acusaram de ser cópia do mestre e amigo, mas essa afirmação não passa de um olhar descuidado sobre sua obra.
Ao vermos as obras hoje, podemos perceber o sentido estilístico dela, o prazer de combinar cores de maneira inusitada e criativa, sem falar nos traços que sempre lembra obras suas e de ninguém mais. É inusitada a crítica que faz a Volpi por ter percebido a hora de parar de pintar por não ter mais nada a acrescentar a sua própria obra, a não ser cair na infinda repetição.
As Cores e Amores de Lore exala afeto por seus poros cinematográficos. E os amores vem ao mesmo tempo de Lore e de Bodanzky. O diretor não se furta de participar de tudo, dando voz a um dos amantes de Lore, mas também se colocando como personagem, em conversas francas com sua protagonistas. É bacana ver como Bodanzky admira Lore e a respeita profundamente. Esse é um filme aparentemente pequeno, mas a cada nova imagem somos embalados pela música de Flávia Tygel, numa composição singela, de rara sutileza em nosso cinema. As Cores e Amores de Lore traz uma beleza típica de um concerto de câmera, para ser apreciada com o coração na mão, os ouvidos soltos e os olhos encantados.
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