Pular para o conteúdo principal

TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ (2024) Dir. Payal Kapadia


Texto de Carmela Fialho e Marco Fialho

O filme indiano Tudo Que Imaginamos Como Luz da diretora Payal Kapadia, que levou o Grand Prix no Festival de Cannes, foca a sua narrativa na trajetória de duas enfermeiras oriundas de regiões rurais da Índia, que residem na capital Bombaim e trabalham em um mesmo hospital, além de dividirem a mesma residência. 

A principal temática do filme é a situação dos casamentos arranjados na sociedade indiana pelos familiares e as infelicidades advindas de tratos de origem patriarcal, que lembram mais acordos financeiros. A tradição aprisiona as mulheres nessa vida de incertezas, pois como aborda o filme uma das enfermeiras teve seu casamento arranjado e nem vive com o marido, que foi para Alemanha há mais de um ano e sequer liga para falar com a esposa. A outra enfermeira, mais jovem, é apaixonada por um rapaz muçulmano e vive uma situação ainda pior, pois encara a questão das diferenças religiosas que impedem a união duradoura do casal. 

A sutileza das cenas e a direção de fotografia da primeira parte são responsáveis pelas imagens mais poéticas do filme, sem contudo se perder de vista as questões políticas que envolvem as classes trabalhadoras em uma sociedade em franca expansão urbana capitalista, através de uma gentrificação que expulsa as classes populares das áreas mais valorizadas para regiões mais distantes dos bairros centrais de Bombaim.  
 
Tudo Que Imaginamos Como Luz passa na primeira parte uma atmosfera de sufocamento das personagens em um ambiente de anonimato e impessoalidade e mostra uma Bombaim com uma imensa densidade populacional do país, que hoje já beira quase 21 milhões de habitantes. Mas nos causou um estranhamento a opção da diretora Payal Kapadia em dividir a história em duas partes bem distintas, essa primeira que prima pelo realismo urbano, e uma segunda, onde as protagonistas vão para um cenário praieiro mais bucólico e a atmosfera torna-se mais lúdica, em que o filme começa a trilhar um caminho mais impreciso.      

Ao adentrar na segunda parte do filme, as personagens são mergulhadas, e nós também, numa região do interior com paisagens de praias idílicas, onde assistimos as relações humanas serem redimensionadas em um outro viés. Nesse contexto, o filme parte para uma solução que beira a ingenuidade, por ignorar a existência de uma situação estrutural que vai além da vontade e desejos das protagonistas. A cada nova cena, a potência da obra vai descambando para um desfecho romantizado.  

Ao assumir essa vertente mais idílica e poética, o roteiro tende a facilitar e até fugir de discussões sobre o grau de enraizamento do patriarcalismo na cultura hindu, como a improvável aceitação em qualquer parte do país da relação amorosa entre a jovem hindu e o jovem muçulmano. Focar somente na harmonia das relações afetivas das amigas por si só não equaciona questões mais amplas que já estavam postas socialmente, nem tão pouco leva em consideração os efeitos da globalização midiática que aniquilou as diferenças entre campo e cidade. A solução mágica de Payal Kapadia, nesse caso, apenas retirou o peso social e esvaziou os questionamentos políticos que Tudo Que Imaginamos Como Luz encampou tão vigorosamente na primeira parte. Assim, a fórceps, o onírico vence o político em um estalar de dedos. Quem dera, a vida pudesse ser resolvida assim, como um mero passe de mágica, né?   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...