Texto de Carmela Fialho e Marco Fialho
O filme indiano Tudo Que Imaginamos Como Luz da diretora Payal Kapadia, que levou o Grand Prix no Festival de Cannes, foca a sua narrativa na trajetória de duas enfermeiras oriundas de regiões rurais da Índia, que residem na capital Bombaim e trabalham em um mesmo hospital, além de dividirem a mesma residência.
A principal temática do filme é a situação dos casamentos arranjados na sociedade indiana pelos familiares e as infelicidades advindas de tratos de origem patriarcal, que lembram mais acordos financeiros. A tradição aprisiona as mulheres nessa vida de incertezas, pois como aborda o filme uma das enfermeiras teve seu casamento arranjado e nem vive com o marido, que foi para Alemanha há mais de um ano e sequer liga para falar com a esposa. A outra enfermeira, mais jovem, é apaixonada por um rapaz muçulmano e vive uma situação ainda pior, pois encara a questão das diferenças religiosas que impedem a união duradoura do casal.
A sutileza das cenas e a direção de fotografia da primeira parte são responsáveis pelas imagens mais poéticas do filme, sem contudo se perder de vista as questões políticas que envolvem as classes trabalhadoras em uma sociedade em franca expansão urbana capitalista, através de uma gentrificação que expulsa as classes populares das áreas mais valorizadas para regiões mais distantes dos bairros centrais de Bombaim.
Tudo Que Imaginamos Como Luz passa na primeira parte uma atmosfera de sufocamento das personagens em um ambiente de anonimato e impessoalidade e mostra uma Bombaim com uma imensa densidade populacional do país, que hoje já beira quase 21 milhões de habitantes. Mas nos causou um estranhamento a opção da diretora Payal Kapadia em dividir a história em duas partes bem distintas, essa primeira que prima pelo realismo urbano, e uma segunda, onde as protagonistas vão para um cenário praieiro mais bucólico e a atmosfera torna-se mais lúdica, em que o filme começa a trilhar um caminho mais impreciso.
Ao adentrar na segunda parte do filme, as personagens são mergulhadas, e nós também, numa região do interior com paisagens de praias idílicas, onde assistimos as relações humanas serem redimensionadas em um outro viés. Nesse contexto, o filme parte para uma solução que beira a ingenuidade, por ignorar a existência de uma situação estrutural que vai além da vontade e desejos das protagonistas. A cada nova cena, a potência da obra vai descambando para um desfecho romantizado.
Ao assumir essa vertente mais idílica e poética, o roteiro tende a facilitar e até fugir de discussões sobre o grau de enraizamento do patriarcalismo na cultura hindu, como a improvável aceitação em qualquer parte do país da relação amorosa entre a jovem hindu e o jovem muçulmano. Focar somente na harmonia das relações afetivas das amigas por si só não equaciona questões mais amplas que já estavam postas socialmente, nem tão pouco leva em consideração os efeitos da globalização midiática que aniquilou as diferenças entre campo e cidade. A solução mágica de Payal Kapadia, nesse caso, apenas retirou o peso social e esvaziou os questionamentos políticos que Tudo Que Imaginamos Como Luz encampou tão vigorosamente na primeira parte. Assim, a fórceps, o onírico vence o político em um estalar de dedos. Quem dera, a vida pudesse ser resolvida assim, como um mero passe de mágica, né?
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