Texto por Marco Fialho
O que mais me agradou em Queer, novo trabalho do diretor Luca Guadagnino, é a sua aposta de levar ao espectador a experiência existencial do personagem W. Lee, uma espécie de alter ego do escritor beatnik William S. Burroughs. O filme busca uma fidelidade espiritual ao autor literário, resgatar em especial a mente conturbada e obstinada de Burroughs. É necessário entender que o livro Queer foi escrito em 1952, embora só tenha sido publicado depois de mais de trinta anos, nos anos 1980.
Devido à data da criação do texto literário, o próprio sentido da palavra Queer não deve ser lido da mesma maneira que a lemos em 2024, apesar que o filme não se prenda nessa diferenciação e isso fique apenas implícito na narrativa. Lee é vivido por Daniel Craig, que está totalmente imerso em um personagem intenso e emocionalmente fora da curva. Lee é devotado à boemia e antes de tudo um outsider, que viveu sua existência sempre no limite.
Luca Guadagnino dividiu o filme em três partes e um breve epílogo, mas se deteve muito mais na primeira parte quando conhecemos a rotina de Lee, que perambula entre bares em um México de aparência féerica, em quartos de hotel e dedicado aos amantes de ocasião. Mas Luca é muito fiel à abordagem de Burroughs, que se deixa levar em suas narrativas pelo delírio ocasionado pelos efeitos do ópio. A câmera acompanha um Lee sempre transtornado, em busca de experiências sexuais com homens mais novos, mesmo que Luca preserve a sutileza dos movimentos, todos muito bem realizados, com a categoria que o diretor gosta de criar em seus trabalhos. A trama se passa tanto no México quanto em outros países da América Latina, onde Burroughs morou para fugir dos Estados Unidos que o tratava como criminoso, portanto como pessoa não grata.
Quem acompanha a carreira de Guadagnino sabe de sua predileção por processos narrativos estilizados. Seu filme anterior, Rivais, também adota uma artesania imagética rebuscada, porém considero Queer mais interessante narrativamente por não ser tão esquemático, por se deixar levar mais pelo olhar desejante de Lee e suas buscas por prazeres mundanos. Se, em Rivais, Luca parecia filmar um comercial de TV, em Queer, ele ressalta um Burroughs selvagem, como dependente químico de ópio, um alcóolatra e disposto a transpor para as letras as experiências extremas que vivia pelos bares da vida. A devoção ao personagem Lee é vívido e orgânica, por mais que do plano narrativo haja momentos de pura artificialidade. Queer traz essa mistura estimulante entre artificialismo fotográfico e organicidade do personagem.
Queer passa um quê de estranhamento para o espectador por pouca coisa acontecer de fato durante os seus 137 minutos, já que não há efetivamente um enredo, apenas uma experiência de vida sendo mostrada. Viramos uma espécie de voyeur de Lee, um homem que vive seu erotismo, e seus vícios, desafiando os valores socialmente aceitos nos conservadores anos 1950.
Como é bem ao feitio do cinema de Luca Guadagnino, o artificialismo toma conta das cenas, há algo que escapa do realismo ao atingir doses oníricas, que ocasionalmente engendra uma atmosfera como se tudo fosse um sonho, talvez pela sensação de que o estado emocional de Lee esteja constantemente afetado pela bebida, pelo uso do ópio ou da ayahuasca, esta última inclusive famosa entre os escritores beatniks.
Contudo, se quisermos falar especificamente de uma trama, talvez, a mais recorrente em Queer seja a fixação que Lee possui pelo jovem Eugene Allerton (Drew Starkey), o seduzindo desde a primeira vez que o avista até conquistá-lo e depois perdê-lo. As divisões dos capítulos passa muito pelas partes da própria relação entre os dois amantes. O México sedutor e permissivo, a América Latina mais permissiva ainda e a selva amazônica (aqui, territorialmente em um sentido amplo) a mostrar a viagem alucinógena mais intensa. Nota-se que a fuga à Ayahuasca dos personagens estrangeiros é mediada numa floresta, mas curiosamente, os indígenas não estão presentes, mas sim uma outra estrangeira que pesquisa o poder desse alucinógeno.
Nessa parte da selva paira uma visão recorrente nos filmes estrangeiros, de sublinhar um exotismo tanto na visão sobre a América Central quanto na América do Sul, como lugares onde tudo pode ser experimentado, mensagens subliminares de povos que vivem sem leis e que permitem práticas culturais as mais ousadas possíveis. Mesmo que Luca Guadagnino se aplique por positivar essa visão sobre nós que habitamos no Sul do continente americano, existe uma tendência irrefreável de nos ver de maneira estereotipada, a partir de uma ideia genérica de povo, sem a devida diversidade e particularidade de cada lugar. Tudo é chapado, uniformizado e visto simplesmente como o distante outro.
Evidente também que a América do Sul, como território, é vista como coadjuvante, ou como um cenário perfeito para a grande e verdadeira história dos gringos se desenrolar, não há uma interação verdadeira. A indiferença dá o tom, ela é real e latente, por mais que haja um esforço por escamotear isso. Nós somos os exóticos a proporcionar uma experiência sensorial diferente e enriquecedora ao europeu e aos americanos do norte. A fotografia salienta essa sensação de irrealidade, um certo surrealismo inspirado em David Lynch agregado para dar corpo imagético a uma determinada experiência. Alguns planos de bar e de quartos de hotel também são bastantes familiares ao universo plástico de E. Hopper, com suas paisagens de solidão e devastação espiritual.
Um dos pontos mais interessantes de Queer é a sua trilha musical, voltado para uma sacudida opção pop que entremeia Nirvana (Come As You Are e Marigold), Verdena (Sui Ghiacciai e Puzzle), New Order (Leave Me Alone) e Prince (17 Days e Musicology), Cole Porter (Nature Boy), Sinnead O'Connor (All Apologies) fora trilha original mais intimista e bastante etérea da dupla Trent Reznor e Atticus Ross (trilheiros oficiais do diretor), que inclui até uma participação nos vocais de Caetano Veloso (figurinha fácil nas trilhas de Guadagnino). Luca é conhecido por incluir trilhas da música pop internacional em suas obras, as quais é um conhecido admirador.
Queer vale sobretudo pela viagem que propõe, o que como certeza agradaria W. Burroughs. Com um cinema comercial cada vez mais preso a uma história e pouco dedicado à experiência de som e imagem, Queer surpreende por propor um algo a mais para o espectador, uma aventura sensorial nos infernos de um homem em busca de prazeres fugidios e de viver a vida com todas as suas forças.
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