Texto por Marco Fialho
Misericórdia é o novo trabalho do ótimo cineasta francês Alain Guiraudie, dos ótimos Na Vertical (2017) e Um Estranho no Lago (2013). Há na trama rocambolesca do diretor, que também é o roteirista do filme, uma sucessão de fatos inusitados que vão se enfileirando e levando a história para caminhos imprevisíveis e engraçados. Os personagens lentamente vão sendo descortinados e de tabela revelam o funcionamento da sociedade da pequena Saint-Martial.
Misericórdia aponta para muitas reflexões. A primeira que gostaria de levantar é a do cinema como um processo de interiorização e isto dentro de uma ótica a mais profunda possível, tanto no que se refere aos espaços quanto ao interior de cada um de nós. Por isso, desde a primeira cena o filme de Guiraudie merece atenção, e o que vemos nela? Algo aparentemente simples, uma subjetiva de um carro numa estrada, revelando uma paisagem interiorana. Guiraudie nos faz chegar à cidade junto com o nosso protogonista Jérémie (Félix Kysyl), vamos de carona no seu carro enquanto os créditos vão aparecendo na tela. É como um mergulho, um convite a adentrar nesse universo de mistérios, pois não sabemos nada sobre o que o personagem está indo fazer.
E Guiraudie vai revelando as informações com calma, só sabemos que ele está chegando para acompanhar um velório e um enterro, sequer sabemos os laços de Jérémie com os outros personagens, se eles são familiares ou amigos dele. O que percebemos é a uma certa tensão de todos com ele. E assim funciona Misericórdia desde o início, como um livro de revelações. Logo descobrimos que Jérémie trabalhou como padeiro na padaria que o morto tinha ao lado de casa.
Cena a cena, Guiraudie vai vislumbrando diversas camadas, uma mais surpreendente do que a outra. A esposa do padeiro, Martine (Catherine Frot), o recebe e o acolhe em sua casa, ela sabia que Jérémie foi amante do marido e logo o seu filho irá rivalizar com ele, querendo o expulsar, desconfiado que o rapaz dê em cima dela. Os desejos estão postos na mesa e por meio dele muito há de ser dito e profanado. Os jogos de interesse se estabelecem e se chocam com os desejos mais secretos que cada um carrega consigo, muito deles reprimidos. Mas no meio dos desejantes, há Jérémie, o desejado. Lembrando que Jérémie desejava mesmo era o morto. E esse detalhe irá conduzir o filme até o fim, com consequências diretas para todos os personagens.
Guiraudie instaura um assassinato e a trama caminha para uma narrativa policial. Jérémie se torna suspeito e o padre da cidade entra em cena para acodí-lo. A cidade de Saint-Martial logo se transforma em um microcosmo propício para dissecar alguns tipos de comportamento humano. O diretor explora os personagens com minúcias de detalhes, a maneira como cada um consegue manipular as informações que possuem num determinado momento. A máxima de que não existe crime perfeito é evocada em Misericórdia, embora fatos também podem ser mudados no decorrer dos acontecimentos para que um crime se torne perfeito. O padre Philippe (Jacques Develay) é um personagem que na segunda metade do filme ganha muita relevância e cada ação dele no filme leva a trama para os lugares mais inesperados. Acredito que a hipocrisia social seja um viés importante de Misericórdia. Os personagens agem sempre por debaixo dos panos, homens visitam outros com segundas intenções, asenhora Martine simula não ter interesse em Jérémie, apesar do seu olhar a contradizer desde a primeira cena em que o vê. Walter (David Ayala), é um homem solitário do local, que recebe visitas masculinas às escondidas e esconde sua orientação sexual para o restante da cidade. E assim caminha essa humanidade, e fica a pergunta: serão outras cidades no mundo assim tão diferentes?
Misericórdia não deixa de ser, ao modo Guiraudie, o seu Twin Peaks. Como qualquer cidade pequena, os segredos são incontáveis e responsáveis por momentos hilariantes, pois a verdade que cada um guarda para si pode comprometer a vida pública de cada um. Como desvendar um crime se todos têm algo a esconder, inclusive seus desejos mais profundos e reprimidos? Guiraudie sustenta a trama por ações, muitas delas secas e com poucos diálogos, apenas o essencial chega até nós. A narrativa de Guiraudie muito me lembrou a de Robert Bresson, pelo asceticismo e austeridade que se impõe nas cenas. Outro elemento que a aproxima ao mestre francês é a não utilização de música, deixando a emoção restrita aos fatos narrados, sempre sem enfeite ou malabarismo técnico, tudo é sempre muito direto.
Não deixa de ser curioso, Guiraudie buscar uma aproximação entre algo bressoniano e as misturar com uma tentativa de extrair das cenas secas situações bem humoradas. Embora, nesse caso, o insólito do roteiro é que leva à graça e não uma tentativa de fazer uma piada textual ou baseado em um maneirismo corporal de um ator. Algumas cenas são morbidamente engraçadas, como o jantar servido com cogumelos colhidos diretamente da terra em que o homem assassinado está enterrado. O mais engraçado e grotesco desta cena acontece apenas alguns minutos depois, quando descobrimos que o Padre Philippe, presente à mesa, sabia da origem dos cogumelos e sadicamente se divertia com a refeição e ao dividí-la com o assassino.
A subversão dos papéis sociais é outro elemento cômico que Guiraudie explora em Misericórdia. O padre que se confessa ao assassino no confessionário é o máximo do deboche e olha que a cena não é filmada como cômica, mas a situação inusitada e escalafobética acaba levando ao riso até o mais sisudo das criaturas. Se em Um Estranho no Lago, o diretor já havia adentrado frontalmente na temática LGBT, agora em Misericórdia há um franco retorno, mesmo que seja mais recatado em termos de imagem. Se antes o diretor se utilizou de um lugar específico onde os romances entre homens aconteciam, agora ele parte para as relações íntimas no privado, mesmo que não vemos efetivamente nenhuma cena de transa entre homens, embora fique claro a existência de várias que ocorreram durante a trama no presente e no passado.
Tentei trabalhar com muitas camadas que o filme me sugeriu e agora no fim da minha reflexão fico com a impressão de que algo ainda me fugiu. É interessante como Guiraudie consegue realizar uma quantidade absurda de cenas expositivas sem se deixar cair na banalidade ou no óbvio. A inteligência do roteiro é tão clara, e ao mesmo tempo desconcertante, que fica a sensação de que muito se pode ainda falar sobre Misericórdia. Mas creio que o que ficou ausente pode ser pensado no papel que o desejo desempenha nessa narrativa tão precisa, que a todo o instante sabe o que quer. O desejo pode ser o que mata, mas também o que impulsiona cada um a viver o que resta e o padre é um bom exemplo disso. Mas talvez seja Jérémie a quem o desejo afinal tenha sido mais frustrante.
Sua resenha é muito boa, mas saí do cinema sem muito entusiasmo.
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