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JURADO Nº 2 (2024) Dir. Clint Eastwood


Texto por Marco Fialho

O mais recente trabalho do ator e cineasta Clint Eastwood é considerado por muitos um filme de despedida, em especial pelos seus 94 anos de idade. Independente de qualquer juízo, Jurado Nº 2 é uma típica obra de Clint tanto pelo tema abordado quanto pela forma cinematográfica, mas também, pode-se ainda acrescentar, pela dubiedade na qual tudo é aqui tratado. Existe uma discussão interminável na crítica acerca da primazia da forma ou do conteúdo no cinema e Clint Eastwood é sempre um ótimo cineasta para trazer à baila essa discussão. 

Eu considero essa questão de forma e conteúdo como complementares, afinal, um determinado tema vai sempre estar emaranhado em como ele é contado pelos tipos de enquadramentos, montagem, interpretações, enfim, em como o cineasta exibe suas ideias sobre o mundo por meio das expressões cinematográficas que faz uso. Em Jurado Nº 2, Clint quer trabalhar a relação entre justiça, verdade e indivíduos. Pode parecer um preciosismo inserir indivíduos aqui numa equação que provavelmente só iria até justiça e verdade, contudo, o que seria dessas duas sem o imbricamento dos indivíduos. Há na trama de Jurado Nº 2, uma consciência de Clint no quanto tudo isso perpassa e contamina a própria vida humana em sua cotidianidade. 

Parece que estamos pisando em ovos, mas em verdade não, pois quem se coloca nessa posição é o próprio Clint Eastwood e não é só nesta obra específica. Várias delas trabalham o ponto de vista como mote, um elemento crucial a desconstruir algo que tendemos a simplificar. Jurado Nº 2 possui esse viés que tende a complexificar algo que seria tratado socialmente como simples e essa é a questão principal do cinema de Eastwood nos últimos anos. Se aí está o grande mérito de Eastwood nas suas últimas investidas cinematográficas, esse é igualmente a pedra no sapato do diretor, afinal, a sua visão de mundo acaba também, como uma tinta, por escorrer na sua arquitetura fílmica.

Por mais complexo que Eastwood pense os planos, de modo a deixar tudo enevoado pelas incertezas, a sua visão de mundo está lá, senão não seria humano, ainda mais que qualquer ideia que pensamos está atrelada a uma forma de ver o mundo. Vejamos, em Jurado Nº 2, o personagem Kemp (Nicholas Hoult) está numa encruzilhada moral por ser o personagem que melhor pode ver aspectos que cercam a morte de Kendall Carter (Francesca Fisher-Eastwood), uma mulher cujo marido (Gabriel Basso) é visto como um potencial agressor por algumas situações públicas em que se colocou, além de ter uma passagem pela polícia por tráfico de drogas. Já Kemp, é um marido carinhoso que está em processo de recuperação de uma situação de alcoolismo e cuja esposa tem uma gravidez considerada de risco. Kemp é um dos jurados, o nº 2, que irá julgar um suposto assassinato cometido pelo marido de Kendall, além de uma testemunha oculta presente na hora de sua morte. 

O brilhantismo de Clint Eastwood está em retirar o protagonismo do filme dos personagens e colocá-lo nas situações. Tem um quê de Hitchcock na trama proposta por Clint ao evidenciar desde muito cedo a verdade sobre os fatos ocorridos e colocando o suspense em como a verdade será trabalhada no desenrolar da trama. Sabemos então quem é o indivíduo que provocou a morte, conhecemos a sua situação de vida, no presente e no passado, suas encruzilhadas, mas igualmente as dúvidas morais que enclausuram a sua consciência. Na visão de Clint, verdade e justiça não caminham necessariamente juntas e podem até serem óbices uma da outra.  

O mais complicado na ideia de Clint sobre a verdade e a justiça está em como sua trama caminha para um questionamento não só da natureza dessas palavras, mas como elas atingem instituições que são a base para a democracia no capitalismo e até muito além dele. Por em xeque essas instituições basilares em troca de quê? Abalar a confiança delas em um mundo onde o fascismo ronda mais forte do que nunca é algo que precisa ser refletido. Ainda mais que jamais a verdade ou a justiça existirão como verdade absolutas ou mesmo como infalíveis, afinal, são frutos do humano, de decisões que podem ser acertadas ou não e o jogo democrático é justamente construído a partir de erros e acertos, de caminhos e descaminhos. 

Contudo, Clint também abre brechas, pois Kemp é um cidadão do bem, casado, branco, hétero, um protótipo de um certo modelo de cidadão estadunidense, que as elites gostam de assim nomear. O que vemos dele são as suas imprecisões, inclusive as de seu caráter, já que jamais dirá a verdade, por mais que ela o corroa por dentro. Mas não esqueçamos que o filme é um thriller e várias situações podem soar forçadas, inúmeras coincidências podem nos levar a dizer que Clint exagerou ao expô-las. Há um clima de tensão constante e ela é construída pelas mãos metódicas de um diretor ávido em diluir os detalhes pelas cenas. Ficamos sempre na expectativa do desenrolar de cada situação, de como o julgamento vai ser encaminhado. Cada jurado com o tempo vai revelando sua forma de ver o suposto crime e isso torna-se precioso para a edificação do suspense.        

No mais, Clint mostra uma maturidade narrativa como sempre impecável, extrai interpretações notáveis, como a da promotora vivida por Toni Collette, uma atriz que há muito tempo se notabilizou pelo seu talento transbordante, que explora com a sutileza necessária as dúvidas e certezas de quem trabalha como uma promotora em franca ascensão profissional. Os enquadramentos de Clint são precisos dentro da narrativa clássica que sempre navega com muita desenvoltura, escolhendo e alternando planos que comunicam sempre as dubiedades que a trama quer sugerir. Há muitas cenas de tribunal bem filmadas, de discussões entre os jurados, além do uso de plano-detalhe, olhares e reações sempre fundamentais para temperar as cenas, algumas estrategicamente entremeadas por algum flashback que trazem à luz uma maior veracidade à trama, sem esquecer que a verdade é o ponto que Clint quer explorar no filme e que por isso, a constante reconstituição dos fatos um elemento fundamental para elucidação dos acontecimentos que estão sendo julgados.

E o que dizer da cena final de Jurado Nº 2? Evidente que não darei spoilers aqui, mas vale comentar a ideia com quem já viu o filme. Para mim, somente um diretor como Clint Eastwood, poderia pensar o final daquela maneira. Muito além da ideia de um final aberto que levamos para casa conosco, a cena paira como um prenúncio de um duelo de faroeste interrompido. Sim, porque o que Clint nos deixa é a sugestão, embora o confronto pela imagem desmonte o espectador, o deixando com a pergunta: e agora? 

Contudo, apesar do final em aberto, o filme de Clint aponta para discussões fundamentais acerca da verdade nos vereditos da justiça e é nesse ponto que a ideologia do diretor aparece. Não há diretores neutros concebendo obras com total imparcialidade. É inevitável, que em algum momento de qualquer filme apareça a visão de mundo do diretor, e isso é sim um dado político que está inserido nas obras e que cabe a nós levantar e discutir. Há na construção de Clint uma descrença em relação à justiça, e digo isso não só em seu aspecto institucional, mas também pelas circunstâncias únicas que cada julgamento traz e que devido ao grande número de processos, o sistema acaba por precipitar suas decisões, sem atentar para os detalhes. As falhas que ocorrem, na maioria das vezes são resultados da visão ideológica dos jurados, que tendem a analisar os casos a partir de uma determinada base moral que elas trazem. Entretanto, da mesma forma, o filme não está alheio a isso, pois o diretor possui seu sistema de valores e crenças. 

Em Jurado Nº 2, Clint Eastwood tenta construir uma rede de complexidade em torno do caso jurídico em questão, mostrar o quanto se julga a partir de vários equívocos, e ainda tomados pela pressa, porque todos afinal precisam retornar as suas vidas cotidianas. O mais cruel é que as armadilhas da trama do filme também se espraiam pelas crenças conservadoras de seu diretor. O que pode parecer uma correção da justiça, pois essa é a bandeira que o filme levanta, pode encantar outras visões que estão na espreita para denegrir a própria ideia de justiça. São os ardis de quem crê na existência de uma ideia de pureza no mundo e que acha ser possível persegui-la, e quem sabe, até alcançá-la. 

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