Texto por Marco Fialho
Prezado Sr. Thomas Hobbes,
Sei que o Sr. viveu no já longínquo século XVII e em seu prestigioso Leviatã disse que o homem era o lobo do homem, numa referência de que nós humanos somos os maiores inimigos de nós mesmos e propôs o Estado como uma instância de mediação entre os homens, para conter a nossa incontida fúria humana. Caetano Veloso, que o Sr. infelizmente não teve a oportunidade de conhecer, com a sua inteligência e perspicácia tragou para o seu belíssimo e sagaz poema musical Língua o seu pensamento, propondo que devoremos o lobo humano que existe em nós, mas em nome de uma transformação filosófica visando uma superação mais ontológica do que histórica.
Essas questões me levaram a seguinte reflexão: o que Sr. pensaria do nosso mundo atual? Essa sentença me abre um imenso vazio no peito, dado à impossibilidade de se descobrir, sobretudo porque o Sr., que foi um arguto filósofo inglês do seu tempo, não chegou a viver de fato o sistema capitalista tal como o conhecemos hoje. Mas ousarei aqui, lançar algumas reflexões, em especial, a partir da própria ideia de natureza humana preconizada pelo Sr., de uma ideia de contrato para que houvesse um mínimo de convivência social entre os homens, que hoje, vivem mais apartados do que juntos, mesmo que acavalados em cubículos, que o Sr. acharia mais parecidos com caixões funerários, porém, foi assim que caminhou a humanidade nesses últimos séculos.
Entretanto, Sr. Hobbes, o capitalismo aperfeiçoou a crueldade entre os homens, com um traço incomum e inesperado: a da impessoalidade, que é o que permeia a maioria das nossas relações sociais atuais. Os serviços públicos essenciais foram sucateados em nome de uma tal de privatização. Isso me fez lembrar da minha adolescência e a enorme propaganda que existia em torno da saúde privada como salvadora da humanidade. Sei que esse assunto talvez nem fosse tão importante para o Sr., afinal, sequer teve tempo de conhecer a revolução francesa, o pensamento de Marx, entre outros que quis o destino fossem posteriores ao Sr.. Os ideias que transformaram o pensamento político e filosófico em relação aos desprovidos dos meios de produção (desculpe aqui pela expressão marxista, o Sr. deve ter ficado boiando, né? Vou tentar não repetir em respeito às limitações históricas do seu tempo). A ideia de saúde, educação e transporte públicos também vieram desse enraizamento histórico que o Sr. não pode presenciar.
Contudo, o que ocorreu Sr. Hobbes, foi que aos poucos, essa junção de serviço público mal prestado e a ideia salvacionista dos planos de saúde privados foi convencendo a maioria a aderir à medicina paga. Hoje o resultado disso, Sr. Hobbes, é devastador, pois tanto faz ser o atendimento particular ou público, em ambos, a demora pode chegar a meses de espera para uma simples consulta e as emergências viraram uma loteria para a vida de quem chega lá necessitado de assistência e perícia. Sair com vida delas é um puro golpe de sorte. Sim, isso porque sucatearam também as universidades públicas, e as particulares, formam mal a maioria dos profissionais que atendem nas tais emergências. Daí eu evocar a tal ideia de loteria.
Então Sr. Hobbes, você com sua inteligência ímpar, vai entender esse absurdo. Ser atendido nos serviços básicos virou um tormento, pois tudo tornou-se lento e um suplício para quem contribui com impostos. Porém, o mesmo não ocorre na hora de se pagar qualquer produto ou serviço e essa é a maior contradição inerente ao capitalismo (que o deixaria literalmente de cabelo em pé!). Se pararmos para refletir sobre isso ficaremos atordoados e surpresos com a seguinte conclusão: onde o capitalismo mais se aprimorou foi na tecnologia do pagamento, no mecanismo de apropriação indevida (apesar da aparência de normalidade) do dinheiro do outro. Hoje, só precisamos encostar o cartão de crédito ou débito numa máquina e eis que o dinheiro já não é mais nosso. O dinheiro assim, não sai do sistema financeiro, fica ali enraizado e crescendo, sobretudo para o banqueiro que o aplica infinitamente.
Sr. Hobbes, isso pode parecer algo banal e na verdade o é, embora o efeito em si não o seja, e diga muito sobre o sistema que vivemos e resolvemos normalizar. No capitalismo realmente tudo está contra o indivíduo e olha que a propaganda sempre foi a inversa, a de valorização do indivíduo e de condenação do coletivismo como modelo de uniformização (e não como benefício). Bem, o Sr. também não entenderá essa questão porque ela nasceu no século XX e se arrasta até os nossos dias. Aqui, se diz que qualquer tipo de ação voltada para o bem coletivo é coisa de comunista. Mas voltemos ao assunto dos pagamentos. Hoje, para pagar o sistema nos oferece o instantâneo, agora, quando se trata de usufruir de direitos e serviços essenciais (que muitas vezes estão sacramentados na constituição) temos que entrar numa longa fila. O sistema, hipocritamente, diz que assim os direitos estão garantidos, mesmo que a morte ou a invalidez chegue no longo percurso do atendimento.
O que melhor define o capitalismo, Sr. Hobbes, é essa ilusão que ele promove às pessoas, enquanto na prática o que vemos são as antíteses que sentimos na pele, embora nunca se consigamos entender o mecanismo como um todo. Somos induzidos a ver o mundo em partes, sempre compartimentado, nunca com uma visão sistêmica de como é organizado o todo. Os contratos aqui, pasme Sr. Hobbes, são espúrios e colocados em letra muito miúda, em textos intermináveis. Os ditos cujos nem mesmos os advogados os leem mais. Assim, a cegueira é algo inextricável ao sistema.
Se o pagamento é automático, às vezes resolvido em um segundo, isto mostra o quanto o sistema bancário, o mais próspero de todos os setores da economia, investiu alto numa tecnologia de apropriação de seu maior bem: o nosso dinheiro. Não casualmente, o mercado financeiro dita as prioridades não só do sistema bancário mas como o de todo o resto da sociedade.
Sim, preciso singelamente lhe manter informado, Sr. Hobbes. Você pode até ter conhecido os bancos lá na sua origem. Entretanto, Sr. Hobbes, você não conheceu o sistema bancário e financeiro, pelo menos tal como conhecemos hoje no século XXI, com seus trilhões de lucros anuais. Hoje, a economia gira em torno dos bancos. Independente da forma de pagamento (Pix, Crédito, Débito ou o cada vez mais raro dinheiro) tudo passa por eles. Eles são os senhores que manipulam o girar da roda gigante da vida contemporânea.
Sr. Hobbes, acho que você já entendeu, mas devo aqui na minha missão sublinhar: o que nós vivemos e assistimos hoje é o ápice do sistema financeiro. O dinheiro em si circula cada vez menos, o grosso do dinheiro que deveria estar circulante, está nos bancos. Quando pagamos com cartões ou Pix estamos permitindo que os bancos continuem com o dinheiro. O que os bancos aperfeiçoaram foi um sistema perfeito para que a economia ficasse dependente deles, um ardil realmente genial. E sequer percebemos isso, porque somos induzidos a crer que tudo isso é prático, seguro e nos facilita a vida cotidiana (e gera um lucro astronômico para eles).
O lobo que o Sr. tanto falou à sua época, domina o mercado e a vida como um todo. Hoje o mundo é financista e impessoal. Até a circulação do dinheiro é impessoal, a gente nem o vê e quando a conta vem já era, percebemos que existe algo maior a nos controlar e reger. Hoje em dia, se há um desafio que alguém pode pleitear para si é o de querer sumir. Pelo sistema bancário atual é praticamente impossível você sumir. O sistema financeiro virou o melhor serviço de detetives do mundo. Adeus Sherlock Holmes (O Sr. também não o conheceu, mas ele foi um detetive criado por um escritor, o Arthur Conan Doyle, que desvendava crimes com a astúcia dos indícios deixados pelo criminoso). Por isso, sinto informar ao Sr. Sherlock Holmes, que os seus serviços super inteligentes de busca e descobertas fascinantes, não são mais necessários, agora, os bancos fazem isso por ti. As pistas estão com eles. Eles são os Deus ex machina de nossas narrativas contemporâneas.
Se os celulares (difícil de lhe explicar, mas isso é uma praga que cabe na palma da mão, um tipo de computador ligado e controlado por uma rede mundial) viraram uma febre, de tal tamanho que até pessoas em situação de rua já os possui. Sr. Hobbes, isto quer dizer que o sistema financeiro adentrou nos meandros do mundo da vigília. Ele anda literalmente em nosso encalço, dorme conosco e vela nosso sono. Aparentemente, os bancos estão nas nossas mãos, ou melhor, nos nossos celulares, mas a real é que nós estamos nas mãos deles. Esse aparelhinho, esse microcomputador manual, pôs de vez a nossa vida nas mãos dos bancos. Então, você pode argumentar que está tudo dominado, como já dizia um funk da antiga (esse tal de funk é um tipo de macumba eletrônica, para tentar simplificar para o Sr.). Sim, está tudo dominado e a notícia que eu tenho para atualiza-lo é: o mundo não está nas mãos de nós como parece, e sim o inverso, nós estamos nas mãos do mundo, isto é, do sistema bancário. E passar bem. Agradeço a paciência e espero que, de algum jeito, a mensagem desse ateu chegue até o Sr.
Assinado: um crítico pretensamente jocoso e desesperançado
Marco...vc me pegou desprevenida..estou acostumada a acompanhar seus comentários primorosos sb cinema....Sua "carta" a Hobbes é perfeita....siga adiante com sua escrita clara e sincera...por vezes o desânimo nos torna sombrios....mas sempre surgem raios de luz q nos trazem um pouco de Fé (não no sentido religioso) .
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