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MALU (2024) Dir. Pedro Freire


Texto por Marco Fialho

Malu enquanto obra acompanha apaixonadamente sua protagonista, que caminha desafiadora em uma linha tênue e cortante entre a insanidade pela qual lutou toda a vida para transformar um país constantemente em frangalhos, e a lucidez de saber que a vida é feita de dureza e perdas. Perante o recrudescimento nos últimos anos do conservadorismo no país, a personagem Malu investe intransigente e coerentemente contra ele com tintas fortes e contundentes, sem perdoar a nada nem a ninguém, mesmo que a personagem tenha pagado um alto preço pelas suas escolhas. Os anos são os de 1990, mas bem que poderiam ser qualquer um dos nossos últimos anos.

Por isso, a nossa fascinação por Malu (uma estupenda Yara de Novaes) é inevitável e a beleza do caos intrínseca à Malu ser terrivelmente cativante. A todo momento oscilamos tal como a personagem da filha Joana (Carol Duarte, sempre brilhante na sua interpretação) entre querer estar perto e se afastar dela. Malu não é para os fracos, sua força vulcânica arrasta e arrasa tudo a sua volta e também quem a assiste em cena. Em um primeiro instante, poderíamos até dizer que este é um filme de personagem, mas quando fazemos uma análise mais atenta, vemos que o mais certo seria enxerga-lo como de personagens, afinal Malu, junto com Dona Lili (Juliana Carneiro da Cunha, uma dama de nossa dramaturgia) e Joana completam uma tríade geracional sensacional e inebriante.

Durante as quase duas horas de projeção, o que o diretor Pedro Freire comprova é o quanto soube escolher o trio de atrizes do filme. Inclusive, podemos dizer que essa seria uma condição sine qua non para que Malu funcionasse. Essa é uma obra rara, poética e extremamente sensível, capaz de nos despertar risos, angústias, dúvidas, amores, carinhos, empatia, liberdade, sororidade, entre outros sentimentos possíveis, um seguido do outro. Logo de cara já sabemos que estamos em um tiro cruzado de emoções, por vezes até contraditórias, mas quase sempre eloquentes. O único personagem masculino da história é Tibira (Átila Bee), um amigo artista do teatro para o qual Malu cedeu um casebre no fundo do terreno. Talvez Tibira seja o personagem capaz de trazer momentos de maior leveza para a trama.  

Os planos próximos de Pedro Freire são verdadeiros petardos que nos atingem em cheio. A personagem Malu é atordoante com sua assertividade inclemente, mas não é só ela. O roteiro estabelece um desenho narrativo hipnótico pela maneira como seguimos a personagem por suas temporalidades, sim, são tempos que perpassam a sua existência. O seu discurso contundente é permeado pelo tempo, por isso, merecedor aqui de uma reflexão especial. Malu não vive só o presente, ela passeia pela sua própria história e a do país. A ditadura está lá, a cortar a carne dela e a nossa, assim como a luta por um teatro popular e participativo também. Malu traz o gérmen da revolução sonhada e acalentada por sua geração. Contudo agora, Malu vive isolada do mundo e grita mais do que age e demonstra uma impotência desesperada de quem não conseguiu se afirmar sequer no seio de sua família. A sua mãe a trata como uma louca drogada; a filha como uma mulher descontrolada e sem futuro, mesmo que haja uma admiração profunda pela personalidade e talento da mãe, além de cuidados e afetos quando necessários. O tempo aqui cria também dissensos, pois cada geração representa o modo de pensar de sua juventude. Conservadorismo, religiosidade, revolução, anarquia, desesperança e pragmatismo estão presentes e fragmentados pela família, sem jamais se expressar numa uniformidade.

A maneira como Pedro Freire apresenta a personagem Malu é simplesmente hilária, cativante e muito diz sobre essa diversidade ideológica que estamos aqui expondo. Dona Lili, sua mãe, leva um padre para tentar converter a filha, para ela, uma usuária de maconha, perdida no vício dessa perigosa erva. A forma como Malu trata o padre é tão impactante que essa cena é perfeita como introdução de sua personalidade à plateia. Daí em diante, podemos esperar dela somente o ilimitado, o imprevisível e a convicção de que a arte e tudo que a cerca, somente ela, é capaz de transgredir e desafiar o sistema social vigente. Por isso, o discurso político nem sempre é tão necessário, sendo as ações dela, os gestuais e olhares muitas vezes suficientes, mesmo que a sua verborragia lhe seja algo inerente a ponto de não ser jamais contida. Malu é irracional até a unha do pé. Mas pensar Lili apenas como uma conservadora inata seria um erro. Ela também tem das suas, mija na rua de maneira inusitada, bebe seu licor de jaboticaba e até chega a fumar o seu backizinho.

Entretanto, pensar o tempo em Malu é também pensar as três gerações, suas diferenças e os conflitos que continuamente desconcertam o presente. Enquanto elas se tratam aos gritos e agressões verbais, e às vezes até físicas, em suas vidas, cada qual está imersa na própria tragédia, e a casa de Malu é o cenário perfeito para a expressão do caótico, com sua visível incompletude, goteiras a rodo, piso de terra no quintal, um cômodo de madeira na frente do terreno e com barata em cima da mesa do almoço. A força dessas três gerações de mulheres possui um vigor raramente visto no cinema. Cada uma a seu jeito tem uma energia surpreendente, uma coragem de encarar a vida com solidão e galhardia. E fora que elas são representadas por três atrizes simbólicas de suas gerações, imponentes e brilhantes no exercício do ofício de representar e que sabem dar cor a essas personagens tão marcantes e inesquecíveis.      

Aliás, é importante dizer que essa família está longe de ser a tradicional brasileira, afinal, o que significa se ter um projeto de um teatro e um centro cultural na sua casa? Como diz Malu: "construir um teatro na favela é revolucionário pacas". Malu conta a história da atriz Malu Rocha, mãe do diretor Pedro Freire. O mais incrível é a corajosa visão que o diretor concebe de sua família, sem autocensura e respeitando o jeito desaforado da mãe, sem romantizar a sua figura controversa e destemida. 

Pode-se até dizer que Pedro Freire foi implacável e cruel ao construir a imagem de sua própria mãe, mas precisa se admitir o quanto ele também soube desenha-la com mais amenidade e fragilidade ao falar da doença que abalou severamente a sua saúde. Mas sabe igualmente se aproveitar desse momento para realizar e deixar a pergunta que fica com cada espectador ao término do filme, afinal, antes de tudo, a indagação de Malu nada mais representa do que a incerteza que vivemos no mundo de hoje: "pra onde a gente está indo?" Nós somos Malu, hoje, ontem e sempre. Malu é uma das grandes surpresas do ano e forte concorrente a ser um dos melhores do cinema brasileiro em 2024.

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