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MADAME DUROCHER (2024) Dir. Andradina Azevedo e Dida Andrade


Texto por Marco Fialho

Madame Durocher trata da primeira mulher aceita oficialmente como parteira no Brasil e a primeira a ser aceita pela Academia Brasileira de Medicina, isto depois da intervenção direta do Imperador D. Pedro II. Para contar essa importante história sobre um pioneirismo envolvendo um protagonismo feminino, as diretoras Andradina Azevedo e Dida Andrade criaram uma narrativa fluente em tom novelesco, com um acabamento cinematográfico cuidadoso. 

Confesso que essa opção por uma narrativa que lembra os filmes seriados me incomoda, em especial, por ir empilhando cenas perfeitamente organizadas e delimitadas em blocos temáticos propositadamente identificáveis. A narrativa se liga por elementos de causa e efeito, assim todas as cenas estão conectadas por uma linha compreensível, quase didática para os espectadores. 

Contudo, existe uma força impressionante e inegável nessa história, mesmo que o roteiro mecanize a montagem que segue cronologicamente sem deixar brechas ou margens para a reflexão. A fotografia, assinada pela própria Andradina Azevedo, se destaca por sublinhar os aspectos sombrios da história.  

A direção de atores de Madame Durocher tem altos e baixos, sendo as participações de Jeanne Boudier e Sandra Corveloni os melhores destaques, com atuações impecáveis da primeira interpretando a protagonista jovem e a segunda ela mais madura. A atuação de André Ramiro como Dr. Joaquim, um médico negro igualmente pioneiro na Academia Brasileira de Medicina, também é muita boa. Mateus Solano, como Dr. Hermínio, não consegue se desvincular de seu trabalho nas novelas brasileiras e constrói um personagem sem camadas e com pouca profundidade. Isabel Fillardis tem bons momentos também no filme e sua personagem até merecia mais tempo de tela. Inclusive é numa cena dela com Madame Durocher, que a direção melhor explora e detalha questões humanas que povoaram a vida das mulheres negras daquele contexto histórico, sendo obrigadas a engravidar para serem amas-de-leite e amamentar os filhos e filhas das senhoras escravocratas. 

Já destaquei acima o talento de Sandra Corveloni e Jeanne Boudier em duas fases diferentes da vida de Madame Durocher. Entretanto, queria salientar como Jeanne Boudier consegue preparar com excelência o caminho para Corveloni brilhar, com uma presença singular e demonstrando muitos recursos cênicos, com um trabalho de corpo imponente e olhares precisos que demarcam a personalidade altiva e corajosa da personagem. 

Madame Durocher traz discussões importantes sobre o papel da mulher na segunda metade do século XIX, principalmente no que se refere à tradição em sua família das mulheres sem marido. Sua avó e sua mãe optaram por não se casarem e isso trazia consequências de discriminação e abandono no caso de doenças, como foi a situação de sua mãe. Apesar de ter se casado, Madame Durocher se tornou viúva muito jovem devido ao assassinato por engano de seu amado marido e acabou trilhando o mesmo caminho solitário de sua avó e sua mãe.

Um dos maiores problemas de Madame Durocher está em como edifica seus ótimos temas. Os diálogos, por exemplo, são muito diretos, não dão respiro às cenas, que vão se sobrepondo não permitindo uma pausa poética para que personagens apareçam em cena com outras matizes e configurações dramáticas. A politização discursiva deveria ser permeada por outras formas narrativas, já que as protagonistas dão conta dos seus papéis. Assim, só resta ao discurso o seu lado político, o que enfraquece o viés artístico do filme. 

Entretanto, é fundamental se valorizar uma história tão importante e que foi mantida escondida durante muitas décadas na nossa história, mesmo que o formato narrativo não seja o mais interessante. Trazer à baila essa mulher que se vestiu como homem para encarar o preconceito de frente e de lutar contra os privilegiados senhores de terra e escravagistas, é sim algo digno de ser salientado, de ser pensado e conhecido pelo público. Madame Durocher reafirma essa história e ainda salienta os interesses de uma elite branca que ratificava o racismo e a misoginia como formas de se perpetuar seus podres poderes.             

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