Pular para o conteúdo principal

BOLERO, A MELODIA ETERNA (2024) Dir. Anne Fontaine


Texto por Marco Fialho

Apesar do título apelativo brasileiro, Bolero, a Melodia Eterna, lembrando que o original é apenas Boléro, o filme dirigido pela cineasta Anne Fontaine é marcado por um requinte e um acabamento visuais de grande qualidade. Não que o tom adotado seja o do exagero, muito pelo contrário, na maior parte do tempo há precisão na execução. 

O filme de Anne Fontaine esmiúça os preâmbulos da concepção do famoso Bolero de Ravel, além de mostrar as mudanças na rotina de vida do compositor Maurice Ravel depois do sucesso de seu Bolero. Há um visível cuidado da direção nessa reconstrução tanto de época quanto de personagens, todos muito bem desenhados e interpretados, com destaque para o ator Raphaël Personnaz, em um trabalho de composição espetacular, com uma contenção impressionante. 

Apesar do trabalho de Fontaine ser impecável, há dois momentos questionáveis, mesmo que sejam de alguma forma compreensíveis. Me refiro ao começo e ao final. No começo, Anne quer mostrar versões das mais variadas do Bolero, e no final, um delírio de Ravel como maestro da própria música enquanto um bailarino contemporâneo faz uma performance. São peças que soam descoladas da história de Ravel e do tom adotado pela direção no restante do filme, e que por isso destoam do conjunto. Mas como esses excessos, ou se quiser chamar de estrepolias narrativas, estão na extremidade da obra de Anne Fontaine, elas não atrapalham o que está entre essas duas partes, que por sinal é muito bem realizado.

Mas a maior força que Bolero, a Melodia Eterna inspira é a elegância de sua mise-en-scène, sua câmera atenta aos detalhes que a direção de arte caprichosamente incrustou nas cenas. A sofisticação da música de Ravel está espelhada na imagem de Fontaine, que se ampara numa fotografia requintada, quente e muitas vezes calcada em um tom sépia. A direção sabe explorar enquadramentos sóbrios, que incorporam movimentos suaves da câmera, que almejam ofertar um conforto visual para o espectador.

É de salientar o cuidado que Anne Fontaine demonstra na construção da carreira de Ravel, atenta para que o compositor não fique restrito ao sucesso de Bolero. Em vários momentos ouvimos a sua música complexa, o esforço dele em elaborar uma sonoridade moderna, que dialogasse com os sons do mundo industrial. Nos Estados Unidos se encantou com o jazz e fez uma turnê em vários Estados. Mas é na volta que ocorre a encomenda de uma música para um espetáculo de dança, da qual nascerá o Bolero. 

A visão construída da personalidade de Ravel por Anne Fontaine é complexa, de um artista fora do comum para os padrões de sua época. Para Fontaine, Ravel é uma alma sensível e devotada à música, como ele gostava de dizer, ele era casado com a música e por isso nunca chegou a casar. Bolero, a Melodia Eterna é um filme agradável, que sabe seduzir o espectador com um misto de leveza e beleza cativantes. Uma obra para ser degustada como uma iguaria fina, apesar de não ter grandes surpresas narrativas.       

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...