Texto por Marco Fialho
Um dos aspectos que mais admirei em Avenida Beira-Mar, longa de estreia da dupla Maju de Paiva e Bernardo Florim, é como a personagem de Mika adentra tanto na vida de Rebeca quanto no próprio filme, tomando de assalto e se impondo com uma personalidade de quem sabe o que quer e o que é. A discussão sobre gênero só vem depois que já temos a certeza de que estamos diante de Mika, não de João Pedro.
É interessante observar a relação entre Rebeca e Mika pelo início. A primeira vez que Rebeca (Milena Pinheiro) vê Mika (Milena Gerassi) não ocorre na cena em que Mika invade a casa da futura amiga, mas antes, quando elas apenas se encararam atraídas pelos sons que sobressaem por trás de um muro que as divide. Rebeca está dependurada em um balanço da casa que acabou de mudar, e a outra, está desfilando de patins branco com contornos de cor rosa pelas ruas desertas de uma sossegada e letárgica Piratininga. O som aqui é determinante para também adentrarmos nas personalidades em questão. O som do balanço atrai nossa atenção para Rebeca, que sacoleja pra frente e pra trás sem sair do lugar, enquanto o som dos patins nos leva para Mika e seus dinâmicos patins que a embalam pelas ruas do bairro e da praia. Assim ambas as protagonistas nos são apresentadas.
Pois é, até onde nada parece acontecer, a vida pode ser arrebatada pelo conflito e pelas lutas políticas que uma sociedade encampa como um todo. A política não escolhe CEP e Avenida Beira-Mar vem dialogar com isso, com um microcosmo que pode sim, falar de questões prementes e vitais para cada um de nós. Embora o aspecto político seja importante, não há espaço para o panfletário e sim para como cada família lida com as questões intrínsecas ao nosso tempo. A narrativa seca, sem grandes arroubos e peripécias técnicas, colocam o filme em um registro humanamente tangível, perto de nossas vidas, como um lugar de reflexão para algo que pode estar sendo vivido perto de nós.
Muitos podem observar que Avenida Beira-Mar assume não só o ponto de vista de crianças entrando na pré-adolescência, mas que também trata de suas dúvidas e certezas com o seu linguajar e maneira de pensar o mundo. Isso agrega ao filme um sentimento de verdade e comoção (embora esse sentimento seja contido ao extremo). Rebeca e Mika são protagonistas não só do filme como de suas vidas, mesmo que tenham que mentir para as suas mães (Andrea Beltrão e Isabel Teixeira interpretam as respectivas mães). A ação dos corpos fala mais do que palavras, mesmo que elas precisem também reafirmar suas identidades muitas vezes pelo grito).
Avenida Beira-Mar sabe explorar as nuances de cada uma das duas meninas. Rebeca vê o mundo através de seu muro introspectivo, já Mika é a personagem da experimentação, da rua, de enfrentar o mundo de frente, mesmo que as sequelas desse enfrentamento fiquem marcadas no seu corpo. Maju e Bernardo partem dessa dicotomia para estabelecer diferenças, embora a coragem seja um elemento que une as duas personagens.
O filme se constrói muito pela ideia de dualidade, não só pela transgeneridade de Mika, que a família insiste em chamar de João Pedro, mas também pela diferença geracional entre pais e filhos. A direção prima pela sensibilidade ao direcionar a história para os afetos e a convivência das diferenças. Os pontos de intolerância que o filme traz lançam discussões cruciais para o mundo de hoje. O filme cresce muito também nas relações geracionais do elenco, que mistura atrizes novas como as duas Milenas com atores e atrizes tarimbados como Andrea Beltrão, Isabel Teixeira, Analu Prestes e Emiliano Queiroz (que faz uma ponta encantadora e surpreendente).
Cada vez mais, se faz crucial possuirmos um cinema em que diversas gerações possam se expressar e mostrar a sua maneira própria de ver o mundo. É fundamental vermos diretores consagrados e os mais veteranos produzindo, assim como diretores estreantes fazendo filmes. É nessa mistura que um cinema se constrói. Avenida Beira-Mar possui diretores muito jovens, que trazem temas e abordagens que são inerentes a sua geração. A qualidade dessa estreia na direção em longas dessa dupla, só faz querermos acompanhar a trajetória desses artistas (juntos ou separados) que estão a levar nossos olhares para outros lugares. O cinema precisa dessa renovação, incessantemente.
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