Texto por Marco Fialho
O que mais me chamou a atenção no drama A Fanfarra, foi a abordagem extremamente sensível e envolvente que o diretor Emmanuel Courcol imprime em sua narrativa. Lentamente, somos levados e embalados na proposta de redenção do personagem Thibaut (Benjamin Lavernhe), um maestro consagrado, que abruptamente se depara com uma grave doença, que mudará radicalmente o rumo de sua vida.
A virada na história ocorre quando Thibaut descobre que sofre de leucemia e precisa de um doador, que preferencialmente deve ser um irmão ou irmã. A revelação da doença leva a muitas outras revelações e a mais importante a de que foi adotado quando criança. Thibaut precisa ir atrás de seu irmão verdadeiro e nessa guinada da história começa um outro filme, com o inesperado encontro com Jimmy (Pierre Lottin), seu irmão de sangue.
O diretor Emmanuel Courcol explora esse momento como um renascimento para o personagem Thibaut, que passa a ver o mundo sob outro viés, o de uma amizade que só tende a crescer. Tudo é construído com tanto cuidado pela direção, sem solavancos, e até muito pelo contrário, como um momento de oscilação emocional de difícil aceitação, mas também como uma evidência do irremediável. Há uma preocupação de sempre priorizar as relações em todas as suas complexidades, o que faz muito bem à narrativa que tal como um novelo vai desenrolando a nossa frente fio a fio, como um tempo múltiplo e repleto de variações, em que se delineia momentos onde a vida é marcada tanto pela imprevisibilidade quanto pelo fascínio.
A Fanfarra é um bom protótipo de como o cinema francês sabe edificar bons dramas, com uma naturalidade espantosa, prescindindo dos recursos melodramáticos hollywoodianos (aqui não é uma crítica ao melodrama, mas antes do uso dele feito em alguns filmes dessa indústria) que soam como truques artificiais, que na maioria dos casos cansam pelo abuso desses recursos, como nos recentes O Tempo Que Temos (2024) e É Assim Que Acaba (2024). É muito interessante como Emmanuel Courcol dribla o aspecto da doença grave de Thibaut, dissolvendo o seu problema de saúde na exploração das relações humanas que torneiam o protagonista.
Um aspecto que me conectou muito ao filme ocorreu no instante que Thibaut, um viajado maestro, começa a desenvolver uma relação afetiva com a fanfarra do irmão Jimmy. Essa busca das relações humanas pelo respeito à importância intrínseca a cada formação musical, independente dela ser uma orquestra ou uma fanfarra. Em ambas, a paixão pela música e o convívio fraternal de grupo se sobressaem e isso é muito bonito no filme.
Mas há de se sublinhar a maneira digna demonstrada pelo personagem Thibaut em todas as cenas, seja com a família que o criou ou com a que acolheu o seu irmão. E o interessante é que o filme não releva essas relações por meio de diálogos forçados, mas com cenas espontâneas, com ações e interpretações convincentes e dramaticamente controladas, nem com um tom acima nem abaixo, o que é raro no cinema de hoje, que tente ora para o exagero ora para o minimalismo.
Se no começo da relação entre os irmãos ainda havia uma certa desconfiança da parte de Jimmy, Emmanuel Courcol realiza uma cena fundamental de aproximação pela música. Primeiro quando Thibaut vai no ensaio da fanfara, depois quando Jimmy o presenteia com um disco de Lee Morgan e sentimos a música como parte das atuações, e a magia que exala essa cena, onde se nota uma transformação acontecendo, uma nuvem de positividade pairando no ar. A entrada de Thibaut no cantinho musical de Jimmy (um tipo de estúdio visivelmente improvisado) constitui uma das cenas mais bonitas que assisti nos últimos anos no cinema, quando penso numa filmagem revelando a fagulha nascente de uma amizade. Com Lee Morgan ao fundo, vemos e sentimos um amor que se molda pela música e pela descoberta de Thibaut do ouvido absoluto de Jimmy. O tempo para os personagens paralisa enquanto eles se descobrem mutuamente pela música. Sim, dois irmãos separados bebês que se desenvolveram musicalmente, embora por caminhos bem diferentes, mas a paixão é do mesmo quilate e é capaz de reconecta-los quase que de imediato. Essa é a maior e a mais sensível revelação que pode acontecer e ela não está no roteiro, mas na química que se estabelece no ato da filmagem.
Tem uma nuance das trocas profissionais e humanas que Emmanuel Courcol amarra com muita graça em seu filme, com muita delicadeza, não só entre os irmãos, mas também entre Thibaut e os membros da fanfarra. Acima da música tem as relações, mas sobretudo, a música se estabelece em A Fanfarra como um instrumento relacional poderoso, onde a humanidade dos personagem navega com trânsito livre. Thibaut regendo a fanfarra talvez seja outro momento sublime, entre tantos que senti no decorrer do filme. Uma aula de como o ato de reger é tão gigante que ele se faz nas miudezas que emana do detalhe vindo de cada instrumento musical e seu executor, seja o maestro de uma orquestra ou de uma fanfarra.
A Fanfarra é uma joia de filme, que prescinde de grandes estrelas do cinema para chamar a atenção do público, e que por isso mesmo, pode não ter uma bilheteria expressiva como devia merecer. Entretanto, sua construção dramática e seu roteiro o eleva a um estatuto cinematográfico expressivo. Um dos momentos mais emocionantes é o seu final, em que Ravel nos invade com seu Bolero cativante, repetitivo, empolgante e brilhante como sempre. Mas aqui, ele se expande, por dialogar com uma energia que Emmanuel Courcol arquiteta nas cenas anteriores, eivadas pelo brilho das relações humanas, onde a música entra como o mais belo espetáculo da vida. E a doença de Thibaut nisso tudo? Bem, pouco importa, já que a construção de uma vida é bem mais potente do que a pulsão da morte. A Fanfarra nos evidencia isso nos seus 102 minutos de projeção.
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