Texto por Marco Fialho
Uma obra impressionante. Essa foi a primeira impressão que tive de 171, filme de Rodrigo Siqueira (Terra Deu, Terra Come e Orestes). Mais do que investigar a narrativa golpista dos 171, o que o diretor faz é expandi-la para o cinema, o que faz de seu filme algo necessário, um objeto de metalinguagem e de dúvidas.
171 traz para o cerne de sua narrativa a discussão sobre discursividade e o teor de verdade e mentira existentes tanto na vida quanto no cinema. Contudo, não se deve esperar de 171 um viés convencional ou didático, ainda mais que a matéria-prima escolhida para tal feito são as vozes e os corpos de seis pessoas presas por estelionato. A maior inspiração de Rodrigo Siqueira para edificação do filme é simplesmente Seis Personagens à Procura de um Autor, um clássico da dramaturgia teatral de Luigi Pirandello e um marco fundamental para se pensar a natureza do ato da representação artística.
A proposta de 171 consiste em desafios, ora para a dramaturgia ora para a espectatorialidade. A dramaturgia do filme coloca de frente a questão da representação, encarada fundamentalmente como um pressuposto metodológico. Existe a verdade ou a encenação dela? Mais importante do que ser é aparentar ser. Somos todos atores perante a encenação da vida? A cena inicial do morto é exemplar quanto a isso, quando vemos um diretor buscando a posição corporal do ator para que ele pareça crível. Não casualmente, Siqueira dedica o seu filme a Eduardo Coutinho, diretor que se consagrou por trabalhar no fio da navalha entre o que é verdade ou mentira em uma narrativa, independente dela ser cinematográfica ou da vida, sendo o aspecto da fabulação um elemento central. Para Coutinho, o ato de ligar a câmera instantaneamente transformava qualquer indivíduo em personagem. Em Jogo de Cena, o mestre Coutinho alcança o máximo de suas indagações ao misturar e confrontar representações de atores profissionais com as de atores da vida.
Por isso, 171 adentra o território do movediço, pois sempre recebemos dele uma rasteira. Os seis estelionatários estão a criar uma narrativa em seus depoimentos? A nossa dúvida faz sentido, na medida que o ato de enganar o outro perpassa a vida desses personagens, é intrínseco àquelas existências. A cada novo depoimento ficamos à deriva, à mercê da instabilidade do terreno em que o filme assenta sua narrativa. O fato dos personagens estarem eivados pela narrativa do convencimento, pela própria prática do estelionato, já atribui a eles uma diferenciação. Um deles é um típico golpista, um falso padre (e lembrar que recentemente tivemos, numa eleição presidencial, um tal padre de festa junina), mas se tem de tudo um pouco, como uma dentista, um rapper, uma traficante, um ator profissional, um diretor de cinema e todos sempre com um elemento que os une, o de serem atores da vida e da arte de enganar.
A um certo ponto do filme é inevitável o espectador se questionar sobre o que está assistindo. Todos os depoimentos ficam em suspenso acerca de seus estatutos de veracidade. Em uma das cenas, Rodrigo Siqueira encontra com um outro diretor de cinema (a princípio um dos 6 estelionatários) e nas apresentações, ele indaga ao seu colega: "você também está fazendo um filme de ficção?" A palavra também, não me passou desapercebida, ela ecoou em mim com a devida força. Seria 171 um exercício de estelionato cinematográfico? Essa pergunta feita por mim, ficou a me rondar quando cheguei em casa e fiquei a refletir sobre o filme. E isso não se constitui uma ofensa, mas sim uma qualidade, afinal o cinema é a arte da mentira (e abordarei isso mais à frente). E pensando mais, me vieram outras ideias: seria a representação artística em última instância (ou seria em primeira instância?) uma forma de estelionato? Pirandello já havia percebido isso com suas peças há mais de 100 anos atrás e por isso escreveu Seis Personagens à Procura de um Autor.
Outro artista que se dedicou a pensar no estatuto da verdade e da mentira no cinema foi Orson Welles, com seu F For Fake (1973), que realiza um estudo sobre a falsificação, autenticidade, autoralidade, realidade e farsa. Esse é um tema realmente sedutor para o cinema, essa fábrica de contação de histórias, onde a verdade e a mentira, o autêntico e o falso caminham juntos e muitas vezes como elemento definidor da própria ideia de arte. Em 171, Rodrigo Siqueira navega por essas águas da palavra como uma possibilidade de enganar e utiliza as conversas com esses estelionatários como dispositivo para a sua investigação.
Assim como Eduardo Coutinho, 171 não almeja lançar a discussão para fechá-la em si mesma, mas antes, para ampliá-la, para jogar o espectador no precipício acerca da complexidade dos discursos e das representações. Personagens de si mesmos ou personagens puramente ficcionais? Quais as fronteiras entre o real e o imaginado? Existiria o real sem o imaginado? O quanto de subjetivo existe na objetividade? São mergulhos sem fim, pedras que caem no abismo sem ter um chão a alcançar. E a arte subverte a vida por encarnar esse abismo onde muitas pedras estão a cair infinitamente, sem freios ou regras pré-estabelecidas. A riqueza de 171 está na falta de limites, do inexato e no discurso calcado no indeterminado da imaginação humana e na imprevisibilidade das narrativas.
De repente, pode-se chorar ou rir de um depoimento, vai da nossa interpretação sobre a sua veracidade ou comicidade, afinal, até o limite do drama e da comédia está aqui em suspenso. 171 nos leva para sugestões duvidosas. A montagem investe em entrecortar os depoimentos, o que cria uma atmosfera de indefinições ao passar abruptamente de uma fala a outra, como se o diretor quisesse esconder algo do espectador, ou lhe dificultar a clareza dos múltiplos discursos. Mesmo pulando de um depoimento a outro, buscamos conexões, embora elas estejam em outros lugares para além das imagens, em especial no campo da concepção fílmica e no dispositivo empregado. A sensação é que os muros entre ficção e documentário aqui foram destruídos e o que temos são os restolhos deles, uns poucos tijolos que sobraram das ruínas a nos impelir para a dúvida. Vemos muitas imagens da parte de fora de presídios, outras, de celas que se abrem. Logo depois ouvimos sons que evocam um presídio, mas as imagens internas dos depoimentos são em espaços anódinos, sem muita identidade, que podem ter sido realizadas em galpões ou algo similar. O próprio preto e branco das imagens sugerem uma atemporalidade interessante, além de uma poética urbana que assimila um sentido de contínua aspereza. A vida difícil de cada personagem faz parte de um encantamento que o filme busca em nós tanto pelas narrativas quanto pelas imagens fortes dos personagens, sempre muito próximos de nós, como se o diretor almejasse uma cumplicidade deles, e nossa, por tabela.
O grande mérito de 171 é o de não querer fazer um tratado sobre o tema, apenas o expor e deixar que as contradições entre os discursos se aflorem pelo confronto. Rodrigo Siqueira sabe do terreno nebuloso que trafegava e não contente colocou uma pedras no caminho, como a metalinguagem do diretor de cinema, que se apresenta como um estudioso do comportamento insidioso dos personagens 171 que escolheu abordar. Nesse ponto, me voltou a dúvida. O cineasta fala do filme dele ou do Rodrigo Siqueira? Ambos estão a fazer o mesmo filme? Esse é um ardil poderoso, pois na filmagem do cineasta a encenação é explícita, estamos defronte vendo parte do material que está sendo filmado e o seu processo.
Ao que tudo indica, em 171, estamos diante do universo da crença, do cinema como religião. A linha é sempre tênue, e a vida (e o cinema) oferece uma gama de possibilidades para todos. Não escolhemos a nossa família, assim como o vigarista não escolheu os pais que eram Testemunhas de Jeová, e esse fato o marca em particular. A intimidade dessa educação não passou em branco para ele, assim como a traficante Marli cujo pai era um exemplo de correção e de sucesso profissional e isso bateu forte na vida dela.
Por trás dessas narrativas tem a história de cada um e isso também se imbrica na própria narrativa do filme, que busca estabelecer a sua, enquanto Pirandello parece estar à espreita, observando tudo. Siqueira desmonta a ideia de verdade, ou melhor, a relativiza, pois o ser humano se reconstrói de várias maneiras e insistentemente, inclusive pelo uso da palavra. Não à toa, o crente diz que vai levar a palavra para os seus fiéis. Se cada pessoa tem o poder de reinventar a sua vida a cada instante, o que dizer do cineasta cuja meta é reinventar, a cada nova cena filmada e depois a cada cena montada, o discurso de seu filme?
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