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O QUARTO AO LADO (2024) Dir. Pedro Almodóvar


Texto por Marco Fialho

Pedro Almodóvar vem durante anos investindo em atualizar o melodrama. Em O Quarto ao Lado, creio que ele atingiu o seu auge nesse aperfeiçoamento ou a sua perfeição se assim preferirmos. Sim, foram anos de persistência, de se burilar o estilo. Desde Carne Trêmula (1997), o diretor iniciou um processo de amadurecimento justamente quando começa a introduzir elementos do melodrama em sua obra, mesmo que ainda o humor estivesse sempre presente e muitas vezes discussões em torno de identidades de gênero.  

Pode-se dizer que o inusitado marcou essa fase que adentrou os anos 2000 com força, com Tudo Sobre a Minha Mãe (1999), Fale Com Ela (2002), Má Educação (2004), Volver (2006), Abraços Partidos (2009), A Pele Que Habito (2011). Quando em 2013 Almodóvar voltou para a comédia com Os Amantes Passageiros (2013), muitos achavam que ele largaria o projeto de atualizar o melodrama para voltar às comédias mais escrachadas. Entretanto, o seu trabalho seguinte, Julieta (2016), contrariou mais uma vez ao se enveredar para um drama mais intimista, um de seus trabalhos mais criticados. Com Dor e Glória (2019), Pedro se enveredou pelo drama autobiográfico, o que deixou mais ainda em suspenso o futuro de suas obras. Somente com Mães Paralelas (2021), o diretor volta para o melodrama, mas agora o misturando com questões históricas. Em 2023, ele filma o burocrático média-metragem Estranha Forma de Vida, o que volta a deixar sua trajetória cinematográfica bastante indecisa.

Um ano depois, em 2024, Pedro Almodóvar volta ao melodrama para o que é o seu filme mais consistente para o subgênero do melodrama. O Quarto Ao Lado foi construído a partir do livro O Que Você Está Enfrentando, de Sigrid Nunez, e o que o diretor espanhol realiza é um filme cujo drama é milimetricamente pensado, sem arestas e com duas atrizes extraordinárias em seus melhores momentos. Julianne Moore e Tilda Swilton interpretam, respectivamente, as inesquecíveis Ingrid e Martha, duas amigas de infância que se reconectam a partir de uma grave doença de uma delas. 

Mas do que a discussão sobre a morte, ou da decisão de termos direitos inclusive sobre os nossos corpos, o filme de Almodóvar traz uma reflexão poderosa sobre as relações humanas e a construção da narrativa do amor e da solidão. A solidão da contemporaneidade está referenciada em E. Hopper, o artista que pensou esse espectro na sociedade norte-americana. O quadro do artista de pessoas nas espreguiçadeiras contemplando o mundo, se amarra com a cena final de Martha, soberba em sua plácida solidão.

Essa mesma solidão está na recorrente citação que Almodóvar faz do conto Os Mortos, de James Joyce, nesse sentimento que a contemporaneidade reservou à humanidade. E não bastando a citação ao poema final do livro de Joyce, Almodóvar ainda cita o filme de John Houston, Os Vivos e os Mortos (1987), justamente no mesmo trecho do poema, que indaga sobre o difícil tema do sentido da vida. Entretanto, Joyce está muito além da citação, já que O Quarto Ao Lado está impregnado do estilo narrativo seco, aparentemente despretensioso dos contos do escritor irlandês.

Em O Quarto Ao Lado, Almodóvar reafirma mais uma vez a influência do mestre Alfred Hitchcock na consolidação do suspense dentro do drama. O roteiro de Almodóvar inicialmente nos encaminha para um encontro entre duas amigas impulsionado por uma doença. Pensamos então que a doença serviria de um impulso para o reencontro. O agravamento do quadro de saúde de Martha leva a história para outro lugar, em que um jogo de vida e morte é estabelecido entre as duas. Os diálogos são precisos, sem arestas, numa contenção jamais vista em um filme de Almodóvar. Não há frase, gesto, olhares, nada a pontuar na direção do mestre espanhol. Tudo caminha com tensão, equilibrando com maestria suspense e drama, como bem ensinou Hitchcock. O jogo da porta aberta e fechada, e o mistério sobre um dia que se sabe próximo, mas não exato. E se o mestre Hitchcock tinha Bernard Herrmann, Almodóvar tem a concepção musical de Alberto Iglesias, responsável por muito da beleza que vemos no filme. A sua música manipula nossos sentimentos, mas sem ser apelativa, pois há uma fina inteligência nessa condução. Mas talvez, o elemento mais surpreendente de O quarto Ao Lado seja a leveza na condução da câmera que insinua uma fotografia elegante, com uma palheta de cores das mais sóbrias e equilibradas de toda a filmografia de Almodóvar.   

Já o trabalho de Tilda e Moore forma algo por demais inebriante. Que sincronia se pode observar nos movimentos de seus corpos. Dá para sentir a mão de Almodóvar por entre esses corpos, assim como se repara a espantosa meticulosidade em todos os elementos e objetos cênicos. Como é belo ver que a contenção das atrizes está presente para entregar o máximo de interpretação. Ambas são mulheres fascinantes, divinas em seus mundos específicos. Uma é uma escritora de sucesso, e a outra, uma correspondente de guerra internacional. Duas inteligências que se respeitam e apoiam. E quando Tilda se transforma em Michele, a filha de Martha, a chave é virada de imediato, com a devida frieza que Ingrid precisará esquentar com seu conhecimento sobre a vida de Martha. E o que dizer do final, que assombrosamente une Ingrid, Martha e sua filha Michele. Desde já O Quarto Ao Lado é um dos mais bonitos do cinema, que se ampara na poesia gelada de James Joyce e na possibilidades dos reencontros às vezes tardios até demais.    

O filme possui muitas nuances, com um jogo cênico onde não parece haver uma peça fora do lugar. Há um momento crucial, em que Ingrid assume a narrativa tanto da trama quanto do filme. Pouco antes de Martha morrer ela é interrogada por Ingrid se podia contar a sua história. E Martha diz: "claro, não estarei mais aqui". Não poderia haver uma homenagem mais sensível do que vermos Ingrid conclamar em seus escritos a voz de Martha, em um formato que ambas antes já haviam sacramentado: o da conversa. Almodóvar faz essas vozes se encontrarem mais uma vez, agora, no plano narrativo e espiritual. 

O Quarto Ao Lado, ao meu ver, e em um certo sentido, é a obra-prima definitiva de Almodóvar, o lapidar de uma escrita que se edifica tanto pela imagem quanto pela palavra. Ganhar o Leão de Ouro no Festival de Veneza, talvez não corresponda ao significado dessa obra. Dessa monta, Almodóvar perfaz algo maior que qualquer prêmio pode oferecer. Fizemos lá no início deste texto uma digressão da carreira do diretor pelo melodrama, e essa revisão serve aqui para mostrar o percurso longo de um artista para atingir um patamar realmente alto. Do quanto precisou construir, os tijolos que lentamente colocou para chegar até esse sublime momento.

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