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LUBO (2024) Dir. Giorgio Diritti


Texto por Marco Fialho

Um dos maiores méritos de Lubo, filme dirigido por Giorgio Diritti, é trazer a temática do preconceito contra o povo cigano durante o período da 2ª Guerra Mundial, normalmente mais centrado ou na discussão do nazifascismo ou no extermínio dos povos judaicos, o que torna esse filme mais valioso ainda. 

O filme centra a narrativa na figura do cigano Lubo (Franz Rogowski), que é convocado pelo governo suíço para proteger às fronteiras contra uma possível invasão alemã, depois que deu início o conflito mundial. Longe da esposa e dos três filhos, Lubo fica sabendo que os filhos foram para doação e a mulher assassinada ao tentar proteger os 4 filhos (um deles ainda na barriga). Lubo fala da desintegração que ocorre a partir dessa tragédia familiar. O objetivo do protagonista passa a ser o da vingança e da tentativa de descobrir o paradeiro dos seus filhos. 

Lubo é um filme pensado para ser cruel, a partir de um personagem fraturado pela história humana. Numa época de perseguição, as características nômades do povo cigano são vistas como uma ameaça à ideia de família tradicional. Para sobreviver, Lubo muda de identidade de maneira sórdida, assassinando um negociante austríaco que vendia as joias dos judeus ricos para ajudar as famílias em dificuldade. Bom salientar, que Lubo era um artista que se vê aviltado de sua condição cigana. A mudança de identidade não é uma escolha própria, ela só ocorre depois de perder toda a sua família para a violência nazista.

Senti falta apenas de conhecer nas quase 3 horas de filme, mais da cultura cigana, já que a convocação de Lubo acontece prematuramente e não temos muito contato com os costumes desse povo cigano específico, os Yenish. Lubo enfoca muito o processo de vingança do personagem e seu desenraizamento na cultura original. Entretanto seria fundamental se poder discutir mais essa cultura a partir do próprio filme.

A presença do ator Franz Rogowski é como sempre extraordinária, um trabalho de composição de personagem exemplar. A sua capacidade de transitar pelas várias nuances culturais da identidade que incorpora para tentar sobreviver em um dos períodos mais difíceis da humanidade. Lubo é baseado em uma história real e que serve como um testemunho relevante ao sempre esquecido povo cigano. 

A fotografia de Benjamin Maier tem momentos preciosos onde demarca bem a obscuridade da trama, de um mundo costurado nas sombras. O que dizer de um mundo que cria um grupo supostamente assistencialista, chamado Kinder der Landerstrasse (crianças da estrada) e Pro Juventude, responsáveis por separar as crianças irmãs pelo processo de adoções, cada uma vai para lugares distantes das outras. Importante reconhecer o personagem de Lubo, que depois vira Bruno Reiter, está marcado por esse mundo hipócrita e marcado por uma violência que além da explícita, cultiva uma outra mais camuflada, cujo as adoções de crianças pode ser incluída. 

O diretor Giorgio Diritti escolhe contar essa história pelo viés de Lubo, um personagem vindo do mundo real e resolve mostra-la pela sua entrada no mundo dos malfeitores e até se tornando um deles. Desse modo, o diretor não camufla suas ações nem encobre o lado obscura da própria vítima, que assassina, mente e comete estelionatos para cumprir sua missão. Seu ponto fraco é o passado e também o amor por uma jovem camareira italiana. 

Lubo então triunfa não só pela atuação de Franz Rogowski, mas por apresentar as ambiguidades de quem escolheu dar o troco pelo mal que lhe fizeram no passado. A força de Lubo está em reconhecer e denunciar, por meio de documentos verídicos da Kinder Der Landstresse, revelados só nos anos 1970 e 1980, o projeto do governo suíço de por fim à população nômade (em especial a cigana) que não se curvou a outro projeto ainda maior, o de unificação do Estado nacional burguês.                      

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