Texto por Carmela Fialho e Marco Fialho
Levados pelas Marés, do consagrado diretor chinês Jia Zhang-Ke, foi gravado em vários anos diferentes da China, começando em 2001 na virada do milênio, passando pela vitória de Pequim para sediar as Olimpíadas de 2008, a construção da barragem da maior hidrelétrica do mundo, as Três Gargantas, localizada no Rio Yangtzé, até chegar na pandemia provocada pelo Corona vírus. Esse rastro de 20 anos, é utilizado pelo diretor para também fazer um balanço do desenvolvimento astronômico da China nesse pequeno arco de tempo.
O filme integra as cenas ficcionais do casal com cenas documentais das transformações urbanas e sociais resultantes da crescente industrialização da China. Alguns simbolismos são fundamentais, como o da cidade em escombros, devido a sua demolição para dar lugar à barragem para atender a hidrelétrica, ser o cenário perfeito para protagonizar o reencontro dos amantes, significando o desmoronar do relacionamento do casal e o envolvimento de Bin (You Zhou) nas falcatruas políticas e com desejo de enriquecer no contexto da sociedade chinesa em franco desenvolvimento econômico.
O objetivo do diretor era acompanhar a trajetória de um casal de amantes, relacionando suas vidas juntos e separados a esses momentos cruciais da China desde 2001, passando pela juventude, idade adulta e início da velhice. Mas durante as quase duas horas de filme, observa-se que Jia Zhang-Ke trata a China como a maior protagonista da história, deixando o casal como coadjuvantes na trama, e até como vítimas do processo capitaneado pelo avanço econômico estratosférico que o país atravessou nos primeiros anos do século XXI.
Tal como em um filme documental, vemos Bin indo embora de Datong e deixando Qiaoqiao (Tao Zhao) na saudade. Depois ela parte à sua procura e o filme passa a narrar esse desencontro. Ela envia mensagens e ele não responde e assim Jia Zhang-Ke começa a enveredar o filme para um quê de desesperança, pelos descaminhos onde o sistema econômico enreda perversamente a vida dos personagens. Lá pelo fim, Qiaoqiao tenta conversar com um robô, mas tudo é em vão e a mensagem é bem clara quanto ao futuro.
Ao final, o que Jia Zhang-Ke nos oferta é um panorama melancólico de uma China que devorou os seus "filhos" e "filhas" em nome de um projeto grandioso onde as individualidades e o amor não cabem exatamente no cotidiano de cada um, nem sequer conseguem abrir um diálogo.
Há uma crueldade nessa construção dramatúrgica onde a ideia de país se sobressai aos indivíduos, e nada melhor do que adentrar na velhice para se mostrar isso. Bin que acreditou no discurso oficial, acabou desmilinguido e dependente de uma bengala para andar. Já Qiaoqiao, nunca levou o projeto do Estado a sério, e acabou bem melhor fisicamente e participando até de uma corrida de rua, depois de passar pelos mesmos 20 anos que Bin viveu. E o que dizer no desamparo de quem não pode mais participar ativamente na vida do país? Ao que tudo indica, é o utilitarismo sem dó do Estado se contrapondo ao humanismo que parece ter sido esquecido ou jogado para debaixo do tapete. Haja robô para dar conta desse mundo.
O Jia Zhang-Ke apresenta em seus filmes, de modo geral, um olhar critico ao acelerado processo de desenvolvimento da China e os impactos, geralmente negativos, na vida das pessoas. Gosto muito dos seus filmes.
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