Texto por Marco Fialho
Dificilmente você verá um filme que consegue ir tão fundo nos personagens, e ainda assim ser tão áspero com eles. Esse é o grande mérito do diretor Matthias Glasner ao realizar Dying - A Última Sinfonia. E o mais cruel desse filme é que antes de subir os créditos finais, vemos o diretor dedicando o filme à família dele, justamente depois de assistirmos um exemplo de como não deveria ser uma família. Óbvio que há uma ironia nessas palavras, o que me leva a supor duas possibilidades: uma, que a família dele é o oposto do que vemos em tela; outra, que ela é muito próxima do que vimos no filme. Convenhamos, que as duas formas têm lá a sua graça, ou desgraça, se assim preferir.
Normalmente, não aprecio comentar a direção de atores logo no início da minha análise, creio que em Dying - A Última Sinfonia, isso torna-se central de ser pensado logo de cara, já que nela reside muitas das qualidades do filme, e afinal, essa é uma obra que delineia pela maneira que constrói seus personagens, mais do que a história em si. Creio não ser possível abrir uma reflexão sem abordar essa característica que se faz estrutural nesse trabalho de grande força dramatúrgica. Cada personagem está inteiro na cena, sem pose, com as fragilidades expostas, sem dó, nem piedade.
Entretanto, precisamos pensar com cuidado a concepção de montagem proposta, sobretudo como um elemento que se impõe como igualmente estruturante, por espelhar o que é essa família na esfera da desestruturação. A montagem acompanha a disfuncionalidade da família Lunies. Sempre implico quando diretores organizam seus filmes por blocos, mas aqui eles cabem com a exatidão de uma luva. Dying - A Última Sinfonia se organiza pela afetividade, ou melhor, essencialmente pela ausência dela, e isso deve ser pensado ainda no âmbito da espinha dorsal do filme. Por isso, a desestruturação das partes aqui faz sentido por combinar com a maneira desencontrada na qual a família se encontra.
A câmera é pensada pela ideia de distanciamento, ela não tem uma presença determinante nas cenas ou se mostra exibicionista, ela apenas permite, ao dar o espaço devido, que cada personagem se revele por meio de seus corpos. Dos pais, a câmera está mais distante, para capturar a fragilidade de seus corpos, dos filhos ela está mais próxima, para capturar suas crises emocionais. Mas há sempre a vontade de mostrar a cena, o contexto, pois esses são personagens que gostam de performar suas angústias de viver.
É interessante como no enredo, não há grandes digressões temporais, há apenas o presente, e como cada personagem lida com ele. Lissy é a mãe; e Gerd, o pai; Tom e Ellen, os filhos adultos. Os pais estão velhos e adoecidos, condenados por doenças terminais. Logo na sequência inicial, conhecemos a situação limite dos dois idosos, um fortemente afetado pela demência e outra por uma cegueira. No mais, no máximo uma vizinha que os acode em algumas situações extremas. Os filhos estão perdidos entre o trabalho e uma vida familiar imprecisa. Tom é um ótimo maestro, mas convive com uma mulher grávida de outro homem e um compositor neurótico no qual ensaia uma sinfonia que nunca está a contento. Ellen trabalha como instrumentista de um consultório odontológico e se entrega ao alcoolismo, e está envolvida com um dos dentistas da clínica em que trabalha, mas ele é casado.
O quadro disfuncional avança, porém, o mais alarmante é que durante as 3 horas de Dying - A Última Sinfonia não há uma troca de afeto sequer. A rispidez prevalece entre todos os personagens. É como se o processo de impessoalidade do sistema capitalista atual imperasse no seio da família Lunies. Cada um cuida da sua vida e é isso. E não é que o filme não tenha emoções, que elas estão ausentes, elas estão em cena em todos os personagens, mas nunca entre os membros da família. Enquanto os pais caminham sem auxílio dos filhos, esses últimos estão erráticos pelas suas vidas particulares. A cena em que a mãe, praticamente cega, leva o marido ao médico, dirigindo um carro é impressionante, inclusive pelo abandono parental que ela revela.
Dying - A Última Sinfonia traz em seu bojo cenas expositivas que muitas vezes se amparam no hiperrealismo, que colocam o espectador na dura missão de acompanhar momentos dolorosos de cada personagem. Mas essa crueza nas imagens funcionam como uma dramatização não emotiva, porque em nenhum momento somos convidados a sermos solidários às situações ou aos sentimentos dos personagens, ficamos em um distanciamento frio, aliás, bem compatível com a frieza dos personagens. A bizarrice de algumas cenas são bem imprevisíveis, como a que Ellen acorda deformada.
A discussão entre a mãe Lissy e o filho Tom, após a morte do pai, talvez seja o ponto alto dessa frieza e falta de afetividade entre os membros da família Lunies. Depoimentos pra lá de duros marcam essa conversa, onde até o ódio inexiste, pois apenas vemos sentimentos ausentes, mais frios que a neve. Não que o filme seja desumano em si, mas sim as situações é que são. A humanização até acontece, mas ela está presente sempre fora do ambiente familiar, seja na ação da vizinha, na relação de Ellen com o dentista ou na de Tom com a namorada ou com o angustiado amigo compositor.
A ideia de sinfonia é inerente a Dying - A Última Sinfonia. O diretor monta a história, como movimentos quase sempre independentes, com exceção da cena em que a vemos primeiro do ponto de vista dos pais e depois pelo viés de Tom. Cada bloco é pensado por um olhar sinfônico, tanto pelo ritmo quanto pela completude dramatúrgica que ele revela. Não sabemos bem como essa história chegou a tal ponto, mesmo que o passado seja citado em alguns momentos, mas ele vem como uma sombra pontual, não como um elemento explicativo para o presente. Esse não é filme fácil de assistir, embora fiquemos presos em suas 3 horas, seja pela atmosfera doentia dos personagens, ou quem sabe, até pela nossa.
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