Texto por Marco Fialho
Sobre o cineasta coreano Hong Sang-Soo ouve-se reiteradamente que suas obras são repetitivas, giram em torno do mesmo tema e a construção da sua mise-en-scène é sempre igual, com aquelas pessoas bebendo, bebendo e falando muito de si mesmas, fora aqueles zoom in e out que sempre temperam seus filmes. Acredito que esses argumentos são redutores por não espelhar a complexidade que existe na aparente simplicidade dos dispositivos narrativos apresentados nos filmes do diretor.
Em As Aventuras de uma Francesa na Coreia, seu mais recente trabalho, o diretor amplia as possibilidades de seu cinema, mesmo que alguns traços anteriores sejam mantidos, afinal, Sang-Soo é um diretor possuidor de um estilo plenamente identificável. As conversas intermináveis estão presentes e a presença constante do álcool também como detonador de emoções. Mas existem outras nuances que precisam ser refletidas sobre o filme.
Chega a ser curioso falarmos acima de método de trabalho, já que é esse o mote de As Aventuras de uma Francesa na Coreia, em que vemos uma francesa (Isabelle Huppert) sobrevivendo na Coreia ensinando francês, mas com um método nada convencional. Primeiro ela conversa com os alunos e alunas, depois ela anota em fichas as impressões para enfim gravar um áudio em um gravador com um resumo no qual se imprime uma interpretação dela do que ouviu. Não deixa de ser enigmático e duvidoso seu método, mas afinal, ele se propõe ir além, ousa falar de sentimentos humanos ao invés de dizer como se pede uma lanche ou um táxi.
Esse intrigante filme de Sang-Soo versa sobre o que é um diálogo ou uma troca entre duas pessoas por meio da língua. Escutamos no filme três línguas diferentes: o coreano, o francês e o inglês. Essa inusitada professora de francês quer ensinar registrando os sentimentos dos alunos em francês.
O filme se resume a três episódios mais longos. No primeiro, uma pianista é uma aluna que se mostra tranquila, tímida e receptiva. Logo no início do segundo episódio, vemos um casal contratando seus serviços, mas é o método a primeira coisa a ser indagada pela mulher. Todos os episódios começam de um determinado ponto, mas não conhecemos o que veio antes, e assim ficamos, sem ter esse lastro. Só temos acesso aquele ponto que vemos e isso parece bastar, ficamos meio desorientados, tentando nos achar dentro da conversa que desenrola à nossa revelia. Propositalmente, há uma falta de um histórico e isso nos deixa sempre com uma sensação de incompletude.
Sobre a personagem francesa de Huppert não sabemos nada dela, nem no início, no meio ou final da história. No episódio final, descobrimos que ela mora com um rapaz coreano que ela encontrou no parque enquanto tocava uma flauta doce e só descobrimos isso na última cena. A música inclusive está presente em todas as partes, sendo que na primeira e na segunda, algumas repetições ocorrem. Na primeira, a menina se oferece para tocar piano e Huppert vai fumar na varanda. Na segunda, a única mudança é no instrumento, que agora é um violão, mas novamente ela se retira, agora para o terraço. Em ambos os casos, eles vão dar uma volta e encontram pedras que revelam algum sentimento nelas. A parte da "aula gravada" em si, os atores repetem exatamente o mesmo texto. Somente no terceiro episódio, o do rapaz, a música surge com uma interatividade entre a francesa e o coreano, só interrompida pela chegada da mãe do rapaz tocando a campainha.
De certa maneira, o que Sang-Soo parece operar é a possibilidade de pensar novas formas de convívio e uma forma diferente de ver e sentir o mundo. E aqui, novamente o álcool entra como um elemento desestruturador dos sentimentos. O álcool está sempre como algo que pode levar as pessoas para um outro lugar dentro delas. Nesse aspecto, a mãe do rapaz na história representa um tipo de visão de mundo ultrapassada, temerosa por novas vivências, sempre alerta aos riscos do desconhecido.
Essa forma estrutural proposta por Sang-Soo talvez seja diferente do que ele fez em trabalhos anteriores, porque aqui temos um elemento destoante, que é a mãe do rapaz. E Huppert representa uma outra maneira de encarar o mundo, de peito aberto, sem programação, sem temer o futuro incerto e que está logo à nossa frente, e até muito pelo contrário, essa imprevisibilidade da página que ainda está em branco, mas será logo preenchida (porque o tempo não para) é a marca dessa narrativa. Essas construções de personagens de Sang-Soo estão impregnadas de uma ideia de filosofia e espiritualidade, além de estarem amparadas em uma reflexão profunda sobre o devir humano, ainda que a narrativa sugira um toque de aleatoriedade. O aleatório aqui é apenas enganador. A vida para Sang-Soo é sempre o momento. E a inserção alcóolica do makgeolli (bebida leitosa coreana, um tipo de vinho de arroz) creio ser nada aleatória, mas sim está ali para evocar um quê de loucura (ou de alegria), um tipo de citação irônica cultural, que baliza a leveza local que o diretor quer trazer para o filme. Como se o filme fosse embalado pelo barato do makgeolli.
Outro aspecto que cabe nessa discussão sobre esse belo As Aventuras de uma francesa na Coreia é a maneira como Sang-Soo retrabalha o amor. A sua presença nesse filme é transbordante e muito dele está em Íris, a personagem de Huppert. Na mitologia grega, Íris é a mensageira divina, a que liga o Céu e a Terra, e vem trazer leveza à vida dos humanos. Essa interpretação mais alargada, que essa quase divindade representa, creio ser fundamental para agregar algo de mágico à narrativa de Sang-Soo. Íris se faz presente para tornar a vida melhor e para Sang-Soo isso seria o equivalente a viver a vida sem freios de felicidade, se permitindo encarar a página branca do amanhã de coração aberto.
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